11 de nov. de 2011


imagino poemas à beira do cais... sempre o cais, não há despedidas no aeroporto.
Ana C.

31 de out. de 2011

Papéis

ordenados obssessivamente
nas gavetas da escrivaninha
TOC, TOC, TOC
infindáveis escritos
rabiscados nos guardanapos
que limpavam ritmados
os vestígios do querer.
Continuavam lá
catalogados para serem perdidos.
Um método minucioso
para evitar gravidez:
doze dias após sangrar
tratava de trancar
as gavetas antes de dormir.
Mas os sonhos férteis
subrepticiamente
escorregavam pela cama e
encontravam o móvel
(herança da mãe).
As gavetas gotejavam
o açúcar azulado
e ela nunca soube explicar
as manhãs vertiginosas
de céu azul-bebê
que contemplava
leve e desordenada
"ai, que enjôo me dá o açúcar do desejo"

13 de out. de 2011


Na escuridão dessa noite dura e fria sou acordada de meus sonhos de menina. Devo crescer tão rápido quanto Alice. Mas não há poção alguma. E não estou no país da maravilhas. Sou apenas alguém aqui, na realidade implacável. Porque a vida é tão terrivelmente democrática? No final ninguém é escolhido e não há concessões. E é preciso desesperadamente confiar. Confiar na lógica absurda da vida. E é preciso entregar-se a ela como quem pula do penhasco num sonho. E acreditar que mesmo nas noites mais escuras ainda existem os vagalumes.

11 de set. de 2011

River of love

Baby, é sempre para você que eu canto, que eu danço, que eu escrevo, que eu sorrio.

29 de ago. de 2011

"Antropologia da Face Gloriosa"

(Deus é a explosão de todos os pontos de vista)

Amo fotografia. Ultimanente tenho amado ainda mais. Há dois anos planejo comprar uma máquina bacana, mas tive outras prioridades mais urgentes e acabei postergando esse antigo desejo. Daí, enquanto não posso praticar, tenho estudado bastante, pesquisado fotografia, conhecido muita coisa linda. Tenho revisitado um livro, na verdade, uma obra de arte, o "Antropologia da face gloriosa" do Arthur Omar. Ele tem sido o meu "preciosas promessas" - aquela caixinha de salmos, que você abre e tira uma promessa de deus para você. Sei lá se todo mundo conhece, mas sempre tinha uma dessas na casa dos meus pais... coisa de minha avó... Hoje, sabendo que deus eu encontro nos olhos da minha gata ou num sorriso de compreensão, já não faz sentido prendê-lo num cubículo de madeira. Mas o "Antropologia" está me trazendo "gloriosos" instantes de alegria. O livro reúne fotos colhidas entre os carnavais de 73 e 96. Omar tem sua própria filosofia da fotografia, que em si já é fascinante. Para ele, quando fotografamos não paramos o tempo, apenas fotografamos o que está parado, esperando para ser fotografado. A fotografia seviria para abrir um fenda no tempo e capturar nas coisas o que já está lá para ser fotografia. As coisas no mundo teriam uma propriedade estética (momentos de êxito, de sensualidade, de espanto, ou qualquer afeto pulsante) que existiria "naturalmente", e ao mesmo tempo seria produzido pelo olhar do fotógrafo. Daí, o ato fotográfico ser aquele encontro capaz de descobrir a glória que atravessa as coisas mais insignificantes. E não no sentido de uma busca de momentos mágicos que se oferecem diante da câmera. Para Omar, na Antropologia trata-se menos de um olho super treinado a reagir com velocidade, mas de "presença de espírito": "o que importa é a conexão entre dois batimentos, e a capacidade de detectar em si mesmo quando isso ocorre. Só assim poderemos capturar o êxtase do outro". Não se trata de um investimento de visão, "é mais uma questão rítmica vibracional, bater na mesma frequencia. Um coincidir, um incidir no mesmo ponto". Ou seja, o fotógrafo só extrai o fotográfico das coisas através de uma conexão com elas. Especificamente nesse livro, seu "objeto" de exploração é o rosto humano, em busca da face gloriosa que habita cada face anônima. O anonimato descola os rostos das referências ao mundo, que se tornam, eles mesmo, mundos. Uma face que "é um anteparo de todo um mundo. Mundo que se abre por detrás dela", Omar nos diz, e confirmamos no encontro. E não fosse o bastante, os títulos dados a cada foto não são legendas explicativas, mas ao contrário, evocam estados e destróem evidências. São narrativas que confrontam os retratos impessoais do livro. Nossa, acho que me delonguei demais! Já devo até ter tornado chato esse livro tão lindo... mas é uma boa dica para quem curte fotografia e poesia. E para mim, que considero arte tudo aquilo que me suscita novos afetos e vibrações, o Antropologia da Face Gloriosa é pura arte. É meu novo "preciosas promessas". A cada consulta uma preciosidade poética. Mas agora, de um deus que dança.


20 de ago. de 2011

18 de ago. de 2011

Aquela praça


Estava sentada no banco daquela praça. A mesma onde chorou o amor que se foi. Desta vez, esperança. Aquele coração ainda despedaçado. Mas enorme, enorme no peito. Batia junto com os passos dela. Rápidos, aflitos por buscar aquilo que. As mãos suadas descascavam a tinta verde. Não conseguia parar. Olhava as árvores, as pessoas passando. Naquele dia tudo era tão feio e alheio. Choro ao telefone. Rasgo no peito. Um buraco negro. Infinito. E agora, aqui, o mesmo de sempre, já tão outro. Tão vivo. Essa luz que vaza por entre as folhas. O cachorro cheirando seu sexo, e olhando desolado, arrastado pela coleira (os humanos não suportam que os animais entendam mais do que eles). Deus, o que se faz quando um amor se vai e o espelho se quebra? Como é possível estar ali de novo, com essa ânsia de se doar? Essa vontade de fotografar o cheiro do sexo? Não. Não queria mais perguntas. Não suportava o velho disco arranhado, ecoando infinito em sua cabeça. Então, sentiu-se tão mulher, e ao mesmo tempo tão criança de novo. Porque aquela crença, aquela mania que tinha de acreditar que tudo ia dar certo e que no fundo as pessoas eram boas de coração, lhe assaltava novamente. Como é difícil encontrar alguém que acredite em você. Mas, por mais que quisesse se proteger já não podia mais. Ela acreditava. Ela acreditava de novo. Ela se amava e sabia que era digna de amor. E esse momento foi tão pleno, que ela se amava inteira e não havia dúvidas. Nem palavras. Seu novo amor chegou. E não era preciso nada além da presença. Elas respiraram respirando. Olharam-se apenas olhando. Uma viu a outra. E se entenderam. Assim, no silêncio. Elas tinham a marca indelével da dor. As unhas esverdeadas tocaram os dedos rosados da outra. E simplesmente amaram amando. E nunca mais aquelas árvores seriam as mesmas. Nem elas.

8 de ago. de 2011

"Coverflor"- Top 10

O cover já nasce com uma marca negra, já que trata-se de uma tentativa de interpretar alguma obra geralmente digna de respeito. O que nem sempre dá certo... mas às vezes vemos interpretações fantásticas que chegam a superar a original, e outras, saem um tanto interessante e até inspiram novos covers. Eis alguns dos meus queridinhos (claro que tenho uns outros tantos, mas desde o filme "Alta Fidelidade" não perco a mania de criar minhas listas...):

-Yael Naim covering "Toxic" da Britney (essa é uma daquelas versões que superam o original - o que não é muito difícil no caso da Britney, mas ficou incrível!)
-Antony and the Johnsons covering "Crazy in love" da Beyoncé (tudo o que ele toca vira ouro, na minha humilde opinião...)
-Lady Gaga covering "Viva la vida" do Cold Play (apesar de não superar a grandiosidade da versão do Cold, essa é interessante)
-Cake covering "I will survive" (sem comentários)
-Amy covering "Will you still love me tomorrow?" da Caroline King (ao contrário de "Valerie", me gusta mais essa versão)
-Edei covering "Forget you" do Cee Lo (nem sabia quem era essa Edei, mas ela criou essa versão solar que não dá para não ter vontade de dançar)
-Devendra Banhart covering "Fistful of love" do Antony and the Johnsons (olha, essa música está na minha lista das "top mais de todos os tempos", mas o Devendra fez uma interpretação original, e tornou-a outra música, meeesmo!)
-Norah Jones e Jamie Cullum covering "Turn me on" (nossa, sem comentário...)
-Joss Stone e Jeff Beck covering "I put a spell on you" (digna)
-Ben Harper covering "Sexual healing" do Marvin Gaye (essa música já é uma delícia, imagina com o Ben Harper...)

Ah, e vai uma dica bacaninha. Um blog, já inativo, mas criativo, só de covers, de onde inclusive plagiei o título da minha postagem (gracias!), chamado Coverflor: www.coverflor.wordpress.com


MusicPlaylistView Profile
Create a MySpace Playlist at MixPod.com

7 de ago. de 2011

Elton John - "Bennie and the Jets"

"Bennie and the Jets" é a música composta por Elton John para seu álbum Goodbye Yellow Brick Road de 1973. A canção fala de uma banda ficcional chamada "Bennie and the Jets", de quem Elton era um suposto fã. Essa apresentação no Soul Train é lisérgica!

4 de ago. de 2011

Todo mundo merece um momento de auto compaixão


Anteontem tive uma crise de choro. Desde quinta passada estou em repouso devido a uma pequena cirurgia no ovário. Apesar de ser magrinha desde pequena, e fingir que comia (tinha que sobrar espaço para outras coisas dentro de mim), sempre fui dura na queda. Não tive nada além daquelas moléstias de criança. Uma amigdalitesinha aqui, outra ali, por falta de dizer certas coisas, mas era só. E não é que há alguns meses atrás sinto umas coisas fora do meu comum e descubro um cisto meio estranhede no ovário? Eu ansiosa, volto do exame com um possível diagnóstico na mão e, claro, vou fuçar no Google o que era o tal do cisto dermóide. Resumindo, é uma espécie de tumor benigno gerado por um óvulo se anima a brincar de isoladinho e nunca mais pára: começa a se dividir sozinho, tentando gerar um organismo sem ser fecundado. O resultado disso é um amontoado desordenado de tecidos, incluindo unhas, dentes, pêlos e ossos. Tipo, um monstrinho. Encontrei algumas fotos num blog chamado “IssoÉBizarro”. Dá para imaginar uma bola de vôlei orgânica e nojenta? Pois é o auge do bizarro que eles colocam lá. Nada comparado ao meu cistinho. Mas primeiro tive um piti plus, claro. Depois fiquei paranóica e sonhei que tinha uma coruja dentro do meu ovário. E só depois (depois mesmo) me acalmei, conversei com a Ká (que sempre me acalma), com minha médica e marcamos a cirurgia (o óvulo não sai da crise e pira em crescer sem um par... tem que tirar). Então, até o dia que antecedeu a cirurgia, deletei o fato. Fiz a linha "Dori desligadinha". Tipo, “ai, comigo? nossa, nem lembrava!”. Mamãe veio para cá, e ela e Ká me acompanharam na madrugada da quinta. E foi tudo muito rápido. Um remédio contra enjôo, uma picadinha de Dormonid, e puff. Em menos de cinco minutos eu apaguei, e nem me lembro como. A volta da anestesia geral é meio “onde estou (...) ãh, que frio, que é esse monte de gente nessa sala? (...)ai meu deus, mexeram no ovário errado”. A incisão foi feita no lado esquerdo, mas o cisto estava no direito. Imaginem como foi para eu entender que eles tinham operado certo... Mas como eu disse, sou fortinha, e logo me tiraram da sala de recuperação. Daí vem a dor. Nossa que dor. Dá para imaginar que alguém fez buracos na sua barriga, inflou tipo um balão e mexeu na suas vísceras? Pois pelo que eu entendi é mais ou menos isso que eles fazem na videolaparoscopia. É um dos procedimentos menos invasivos, e mesmo assim você fica barriguda e pede pelo amor de deus para tirarem as agulhas que esqueceram lá dentro, e colocarem seus órgãos no lugar. Fora a dor da brincadeira, evoluí muito bem, sem nenhuma reação à anestesia geral, e tive alta no mesmo dia. Dei só uma choradinha ao telefone quando a Ká me ligou, mas me recompus e assim fiquei até anteontem. Todos esses dias não reclamei, fui positiva, só me escorriam lágrimas quando tossia. Nossa, como dói ardido tossir! E não é que, cinco dias depois de entrar na faca é que tive uma crise de choro? Na hora que tentamos tirar o micropore e vi os cortinhos, desmoronei. E só não sentei no chão do banheiro e esperneei porque ia doer pra caramba. A Ká ficou perdida, “mas meu deus, deu tudo certo, você está bem, se recuperando, forte”. E eu chorava mais. “Ka você não entende? Agora eu posso chorar! Tive que ser forte, não tive escolha. Tive que confiar que alguém ia abrir minha barriga! Abriram mesmo! Olha só o corte, olha só!”. Chorei, chorei. Aproveitei para chorar por tudo o que tinha segurado e mais uns choros dos últimos meses. Ela sentou no bidê e esperou sobrar só soluço. Me abraçou. “Calma, calma”. Ai que alívio... que alívio se permitir por alguns minutos ter pena de si mesmo. Lembro-me que Kevin Arnold disse algo tipo: “todo mundo merece um momento de auto compaixão”. Ai, ai. Tô com ele. Mereço mesmo. Não dá para ser fortona a todo momento. E para falar verdade, sinto-me muito mais forte agora.

foto: Diane Arbus (sempre quis usar essa foto! ehehehe)

2 de ago. de 2011

Erik Satie - Gnossienne No. 1

Para mim essa é uma das composições mais tocantes de Erik Satie. Essa interpretação não é das minhas preferidas. Acho que poderia ser menos agressiva e estridente, mas vale pela animação. Linda!

1 de ago. de 2011

Amorzinho


Sua tristeza soava em diminuta. Peguei concha para lhe dar um pouquinho de mar. Escolhi a cereja mais vermelha da vasilha leitosa. Calcei seus pés branquinhos com meias coloridas. Virei-a de bruços e deitei em suas costas salpicadas de estrelas. Meu coração foi caixinha de música e ela adormeceu. Sonhou que tinha asas e viu cavalos marinhos. Sorriu-me com os olhinhos inchados.

“Dorme baby, pode sonhar mais um pouco. Hoje eu cuido do mundo aqui fora.”

(foto: Harry Callahan)

30 de jul. de 2011

"Bliss" - Katherine Mansfield

Dias atrás revisitei o livro "Felicidade e outros contos", de Katherine Mansfield. E mais uma vez fui arrebatada pelo conto "Bliss" (que foi traduzido como "felicidade", mas não encontra tradução correspondente em outras línguas, tal como a palavra saudade). Divido com vocês essa "felicidade".


"Embora Bertha Young já tivesse trinta anos, ainda havia momentos como aquele em que ela queria correr, ao invés de caminhar, executar passos de dança subindo e descendo da calçada, rolar um aro, atirar alguma coisa para cima e apanhá-la novamente, ou ficar quieta e rir de nada: rir, simplesmente.

O que pode alguém fazer quando tem trinta anos e, virando a esquina de repente, é tomado por um sentimento de absoluta felicidade — felicidade absoluta! — como se tivesse engolido um brilhante pedaço daquele sol da tardinha e ele estivesse queimando o peito, irradiando um pequeno chuveiro de chispas para dentro de cada partícula do corpo, para cada ponta de dedo?

Não há meio de expressar isso sem parecer "bêbado e desvairado?" Ah! como a civilização é idiota! Para que termos um corpo, se somos obrigados a mantê-lo encerrado em uma caixa, como se fosse um violino raro, muito raro?

"Não, isso de violino não é exatamente o que eu quero dizer" — ela pensou, correndo escadas acima e apalpando a bolsa, em busca da chave — que ela esquecera, como sempre — e sacudindo a caixa do correio. "Não é o que eu quero dizer, pois — "obrigada, Mary" — ela entrou no vestíbulo. "A babá voltou?".

"Sim, senhora".

"E as frutas?".

"Sim, senhora. Veio tudo".

"Traga as frutas para a sala de jantar. Vou dar um arranjo nelas antes de subir".

Estava escuro e muito frio na sala de jantar. Mesmo assim, Bertha tirou o casaco; não podia tolerar por mais tempo o aperto da roupa, e o ar frio penetrou em seus braços.

Dentro do peito, no entanto; havia ainda aquele ponto brilhante, incandescente, de onde saía uma chuva de pequenas fagulhas. Era quase insuportável. Ela mal tinha coragem de respirar, por medo de atiçar aquele fogo ainda mais; contudo, respirava fundo... fundo. Quase não tinha coragem de olhar-se no espelho frio; mas olhou, e ele mostrou-lhe uma mulher radiante, com lábios trêmulos, sorridentes, grandes olhos escuros e um ar de quem está à espera de que alguma coisa... divina aconteça. Ela sabia que iria acontecer infalivelmente.

Mary trouxe as frutas em uma bandeja, e também uma tigela de louça e uma travessa azul, muito linda, com um brilho estranho, como se estivesse mergulhada em leite.

"Quer que eu acenda a luz, senhora?".

"Não, obrigada. Ainda posso ver bastante bem".

Havia tangerinas, laranjas e maçãs, misturadas com o vermelho dos morangos. Algumas pêras amarelas, lisas como seda, uvas brancas, cobertas por uma florescência prateada, e um grande cacho de uvas roxas. Estas últimas, ela havia comprado para combinar com o tapete novo da sala de jantar. Sim, aquilo parecia bastante afetado e absurdo, mas era realmente a razão pela qual ela as tinha comprado. Na loja, havia pensado: "Preciso de algumas frutas cor de púrpura para aproximar o tapete da mesa." E na ocasião isto pareceu fazer muito sentido.

Terminado o arranjo, duas pirâmides de forma arredondada, ela se colocou a certa distância, para ver o efeito — e estava realmente muito curioso, pois a mesa escura parecia dissolver-se na luz fosca e tanto a tigela de louça como a travessa azul pareciam flutuar no ar. Isso, é claro, naquele estado de espírito que ela se encontrava, era tão incrivelmente belo... Ela começou a rir.

"Não, não. Estou ficando histérica". Pegou sua bolsa e seu casaco e subiu correndo para o quarto da filha.

A babá estava sentada ao lado de uma mesa baixa dando o jantar da pequena B., depois do banho. A criança vestia uma camisola de flanela branca e um casaquinho azul, de lã. Os cabelos finos e escuros estavam escovados formando um topetinho engraçado. Ela olhou para cima e começou a pular quando viu a mãe.

"Agora, meu benzinho, coma direito, como uma boa menina", disse a babá, torcendo a boca num jeito bem conhecido dela, como a dizer que ela havia chegado em hora inoportuna, mais uma vez.

"Ela tem estado bem, Nanny?".

"Ela se comportou muito bem durante toda a tarde" murmurou Nanny. "Fomos ao parque; eu me sentei em uma cadeira e tirei-a do carrinho. Um cachorro enorme veio até nós, e pôs a cabeça sobre meus joelhos. Ela agarrou a orelha dele, e puxou. Ah! a senhora devia ter visto."

Bertha teve vontade de perguntar se não seria perigoso deixar que a criança puxasse a orelha de um cão desconhecido, mas não se atreveu. Permaneceu observando-as, os braços largados ao longo do corpo, qual uma menina pobre frente à menina rica com sua boneca.

O bebê olhou para ela outra vez; fixou os olhos nela, sorriu com tanto encanto, que ela não se conteve.

"Ah! Nanny, deixe que eu termine de dar o jantar dela, enquanto você arruma o banheiro".

"Bem, madame. Ela não devia mudar de mãos enquanto come" — disse Nanny, ainda murmurando. "Isso a perturba e muito. É muito provável que ela vá ficar agitada".

Que absurdo! Para que ter uma criança, se ela deve ser guardada — não em uma caixa, como um violino raro, mas nos braços de uma outra mulher?

"Não, é assim que eu quero!".

Muito ofendida, Nanny entregou a criança.

"Bem, não a excite depois da comida. A senhora sabe que a excita, madame. E depois ela me dá um trabalho!".

Graças a Deus! Nanny saiu do quarto, levando as toalhas de banho.
"Agora eu a peguei para mim, minha coisinha preciosa" — disse Bertha, enquanto o bebê se inclinava para ela.

A criança comeu fazendo festa, abrindo a boca para receber a colher e depois agitando as mãos. Às vezes prendia a colher na boca e outras, logo que Bertha enchia a colher, lançava a comida aos quatro ventos.

Terminada a refeição, Bertha virou-se para a lareira.

"Você é linda, muito linda!" disse, beijando seu bebê. "Sou louca por você".

E, realmente, ela a amava tanto! — Seu pescoço, quando ela o inclinava para a frente, os artelhos delicados, quase transparentes à luz do fogo... Todo aquele sentimento de felicidade voltou e, ainda uma vez, Bertha não sabia como expressar essa sensação, nem o que fazer com ela.

"Telefone para a senhora" — disse Nanny, voltando em triunfo e pegando a sua criança.

Bertha desceu correndo. Era Harry.

"Ah, é você, Ber? Olhe, vou chegar tarde. Tomarei um táxi e irei tão depressa quanto puder; mas sirva o jantar dez minutos mais tarde, sim? Tudo bem?".

"Sim, perfeitamente. Ah, Harry!".

"Sim?".

O que tinha ela para dizer? Nada. Queria apenas prolongar aquele contato. Não podia só gritar absurdamente: "O dia hoje foi tão maravilhoso!"

"O que é?" — tornou a voz de longe.

"Nada. Entendu" — disse Bertha, colocando o fone no lugar e pensando o quanto a civilização é idiota.


Eles tinham convidados para o jantar: os Norman Knights, um casal muito distinto — ele estava abrindo um teatro e ela tinha muito entusiasmo por decoração de interiores; um jovem, Eddie Warren, que acabava de publicar um pequeno livro de poemas é a quem todo mundo vinha convidando para jantar, e um "achado" de Bertha, uma moça chamada Pearl Fulton. O que ela fazia, Bertha ignorava. Haviam-se encontrado no clube e Bertha se apaixonara por ela; isso sempre acontecia quando ela encontrava mulheres bonitas que revelassem algo incomum em sua personalidade.

O que a intrigava era que, embora tivessem estado juntas freqüentemente e conversado muito, Bertha não podia ainda ter um conceito formado sobre Pearl Fulton. Até certo ponto, ela era de uma franqueza rara e maravilhosa, mas além desse ponto ela não passava.

E haveria alguma coisa além disso? Harry dizia que não. Julgava-a um tanto maçante e "fria como todas as louras, com um toque, talvez, de anemia cerebral". Mas Bertha não concordava com isso; pelo menos, ainda não.

"Não, sua maneira de sentar-se, com a cabeça levemente inclinada para o lado, sorridente, esconde alguma coisa, Harry, e eu hei de descobrir que coisa é essa".

"O mais provável é que seja estômago pesado", disse Harry.

Ele se empenhava em pegar Bertha pelo pé com respostas daquele teor... "fígado gelado, minha querida", ou "pura flatulência", ou "doença dos rins"... e assim por diante. Por alguma estranha razão, Bertha gostava disso e quase o admirava por falar desse modo.

Ela entrou na sala de estar e acendeu a lareira; depois pegou as almofadas que Mary havia arrumado com todo cuidado e atirou-as de volta aos sofás e cadeiras. Foi o bastante para dar vida à sala. No momento de atirar a última almofada, ela se surpreendeu apertando-a contra si apaixonadamente. Mas isso não apagou o fogo em seu peito. Ah, pelo contrário!

As janelas da sala abriam-se para um balcão, e davam para um jardim. No fundo, perto do muro, havia uma esguia pereira, toda florida, esplêndida, que permanecia imóvel contra o céu verde-jade. Bertha não podia deixar de sentir, mesmo a essa distância, que não havia um só botão por abrir, nem uma pétala murcha. Embaixo, nos canteiros do jardim, as tulipas vermelhas e amarelas, carregadas de flores, pareciam inclinar-se na penumbra: Um gato cinzento, arrastando-se de barriga, esgueirava-se através do gramado, e um gato preto, como se fora sua sombra, ia logo atrás. Ela tremeu, curiosamente, ao vê-los tão atentos e rápidos.

"Gato é um bicho horrível!" — ela pensou, e, saindo da janela, começou a andar de um lado para outro. Como era forte o perfume dos junquilhos dentro da sala quente! Forte demais? Não, não demais. E então, como que vencida, ela atirou-se sobre um sofá e cobriu os olhos com as mãos.

"Estou muito feliz, muito feliz" — murmurou.

E parecia-lhe ver por entre as pálpebras a linda pereira, com aquela abundância de flores, como símbolo de sua própria vida.

Realmente — realmente — ela tinha tudo. Era jovem, Harry e ela se amavam como nunca, davam-se muito bem e eram realmente bons companheiros. Ela tinha um adorável bebê. Não precisavam se preocupar com dinheiro. Tinham esta casa e este jardim, que eram absolutamente satisfatórios. E amigos modernos, interessantes; amigos escritores, pintores e poetas ou pessoas voltadas para as questões sociais, justo a espécie de amigos que eles queriam. Além disso, havia os livros, havia a música, e ela encontrara aquela costureirinha maravilhosa, sua cozinheira nova fazia omeletes deliciosos, e eles iam fazer uma viagem ao exterior, no verão.

"Estou ficando maluca! Maluca!" Ela sentou-se, mas sentiu-se inteiramente atordoada, inteiramente bêbada. Devia ser a primavera.

Sim, era a primavera. Agora, ela sentia-se tão cansada que mal poderia subir a escada, para vestir-se.


Um vestido branco, um fio de contas de jade, sapatos verdes e meias. Era coincidência. Ela havia decidido esse arranjo horas antes de ter estado à janela da sala.

As dobras de sua saia produziram um suave farfalhar ao deslizar rente ao chão, quando ela foi à porta de entrada e beijou a senhora Norman Knight, que estava tirando o mais estranho casaco cor de laranja, com uma fileira de macacos pretos em volta da barra, subindo na parte da frente.

"Por quê? Por quê?! Por que a classe média é tão tola, tão completamente desprovida de senso de humor?! É por pura sorte que estou aqui, minha querida, e Norman é meu anjo protetor. Meus queridos macacos chocaram tanto as pessoas do trem que elas simplesmente se puseram a me devorar com os olhos. Não riram, não estavam achando graça, o que eu teria gostado. Apenas olharam-me fixamente e me fuzilaram com os olhos."

"Mas o melhor de tudo" — disse Norman, apertando contra o olho o monóculo de aro de tartaruga — "você não se importa que eu conte, Face, se importa?" (Na intimidade eles se chamavam Face e Mug.) "O melhor de tudo foi quando ela, furiosa, virou-se para a mulher que estava ao seu lado e disse: "A senhora nunca viu um macaco antes?".

"Ah, sim" — a senhora Norman Knight juntou—se aos que riam. "Não foi mesmo genial?".

E, mais engraçado ainda era que agora, sem o agasalho, ela parecia um macaco muito inteligente, cujo vestido de seda amarela fora feito com cascas de bananas. E os brincos de âmbar pareciam duas nozes bamboleantes.

"It is a sad, sad fall!"² — disse Mug, parando em frente ao carrinho do bebê. "When the perambulator comes into the hall" — e ele deixou de lado o resto da citação.

A campainha tocou. Era o esbelto e pálido Eddie Warren, em estado de completa desgraça, como sempre.

"É esta casa mesmo, não é?" — perguntou ele.

"Bem, acho que sim. Pelo menos assim o espero" — disse Bertha, com animação.

"Acabo de ter uma experiência muito desagradável com um motorista de táxi. Ele era terrivelmente sinistro. Não pude conseguir que ele parasse. Quanto mais eu lhe chamava a atenção e lhe pedia que parasse, mais depressa ele ia. E à luz do luar aquela figura bizarra, com a cabeça achatada, debruçando-se sobre o minúsculo volante...".

Ele estremeceu, tirando um imenso cachecol de seda branca. Bertha notou que ele usava meias também brancas, muito vistosas.

"Mas, que coisa horrível!" disse ela em voz muito alta.

"Sim, foi mesmo" — disse Eddie, seguindo-a até a sala de estar. — "Eu me vi decolando para a eternidade num táxi alado".

Ele conhecia os Norman Knight. Na verdade ia escrever uma peça para Norman Knight, quando o esquema do teatro começasse a funcionar.

"Bem, Warren, como está a peça?" — perguntou Norman Knight, deixando cair o monóculo e dando, assim, oportunidade ao olho de vir à tona, antes de ser ocultado outra vez.

A Sra. Knight interveio: "Mas que meias lindas, Sr. Warren!"

"Que bom que a senhora tenha gostado delas", disse ele, olhando para os pés. "Parece que elas ficaram muito mais brancas desde que a lua apareceu". Virou para Bertha o rosto magro e triste. "Há uma lua, a senhora sabe?".

Ela teve vontade de gritar: "É claro que sei! Muitas vezes, freqüentemente!".

Ele era, na verdade, uma pessoa muito atraente. Mas atraentes eram também Face, agachada em frente ao fogo, no seu vestido de cascas de bananas, e Mug, fumando um cigarro e dizendo, enquanto batia as cinzas: "Por que o noivo está demorando tanto?".

"Ei-lo que chega!".

A porta da frente abriu e fechou com estrondo. Harry gritou: "Alô, pessoal. Volto em cinco minutos!" Subiu correndo a escada. Bertha não pôde deixar de sorrir; ela sabia como ele gostava de agir sempre sob alta pressão. Afinal, que importância teriam cinco minutos a mais? Mas ele sustentava para si mesmo que cinco minutos tinham, sim, muita importância. E fazia questão, depois, de chegar e ficar na sala numa postura serena, tranqüila.

Harry tinha um tal gosto pela vida... Ah, como ela apreciava isso nele! E sua paixão pela luta, por encontrar em cada coisa que se lhe opunha um outro teste para seu poder e sua coragem, também isso ela compreendia. Mesmo quando, vez por outra, ele pudesse parecer talvez um tanto ridículo, aos olhos dos que não o conheciam bem... Pois às vezes ele se atirava em batalhas que não existiam... Ela conversava e ria, realmente esquecida, até a chegada dele à sala (tal como ela imaginara), de que Pearl Fulton não viera ainda.

"Será que a Pearl esqueceu?".

"Espero que sim", disse Harry. "Ela tem telefone?" "Está chegando um táxi". E Bertha sorriu, com aquele divertido ar de posse que sempre assumia quando suas descobertas femininas eram novas e misteriosas. "Ela vive em táxis".

"Assim vai engordar" — disse Harry com frieza, tocando a campainha para que o jantar fosse servido. "Um perigo assustador para mulheres louras".

"Harry, não diga isso" — advertiu Bertha, rindo.

Veio outro breve momento, enquanto esperavam rindo e conversando, só um pouquinho à vontade demais, um pouquinho descontraídos demais. Aí chegou Pearl Fulton, toda prateada, com uma tira de prata prendendo seus cabelos loiros, sorrindo, com a cabeça pendendo um pouco para o lado.

"Estou atrasada?".

"Não, absolutamente" — disse Bertha, pegando-a pelo braço. "Venha comigo". E entraram na sala de jantar.

O que havia naquele braço frio, que podia avivar — começar a atiçar — atiçar — o fogo da felicidade com o qual Bertha não sabia o que fazer?

Pearl Fulton não olhava para ela; quase nunca olhava as pessoas diretamente. Suas pálpebras pesadas estavam sempre semicerradas, e em seus lábios um estranho sorriso ia e vinha, como se ela, em vez de ver, preferisse ouvir. Mas Bertha soube, de repente, como se o mais longo, o mais íntimo olhar tivesse sido trocado entre elas, como se tivessem dito uma à outra "Você também?", que Pearl, ao mexer a bela sopa vermelha em seu prato cinza, sentia exatamente o que ela estava sentindo.

E os outros? Face e Mug, Eddie e Harry, suas colheres subindo e descendo, tocando os lábios com os guardanapos, fazendo bolotas com miolo de pão, brincando com garfos e copos, conversavam.

"Eu a encontrei no show do Alpha — uma figurinha muito esquisita. Ela havia não apenas cortado rente os cabelos, mas também parecia ter tirado um bom pedaço dos braços e das pernas, do pescoço e do pobre narizinho também".

"Ela não é muito liée a Michael Ost?".

"O homem que escreveu Love in False Teeth?³".

"Ele quer escrever uma peça para mim. Um ato. Um homem. Ele decide suicidar-se; discute todas as razões pró e contra. E exatamente quando chega a uma conclusão sobre o que fazer... cai o pano. Uma idéia nada má".

"Como ele vai chamá-la? Dor de estômago?".

"Acho que encontrei a mesma idéia numa revistinha francesa inteiramente desconhecida na Inglaterra".
Não, eles não compartilhavam. Mas eram queridos — queridos — e ela gostava muito de tê-los ali, em sua mesa, oferecendo-lhes comida e vinho deliciosos. Na verdade, ela desejava dizer-lhes o quanto eles eram encantadores e que grupo decorativo formavam; como eles pareciam avivar uns aos outros e como eles lhe faziam lembrar uma peça de Tchekov!

Harry estava gostando do jantar. Era próprio dele — bem, não sua natureza, exatamente, e não, certamente, uma pose — bem, um pouco de cada coisa — falar sobre comida e alardear sua paixão "impudica por carne branca de lagosta e o verde dos sorvetes de pistache, verdes e frios como pálpebras de bailarinas egípcias".

Quando ele levantou os olhos para ela e disse: "Bertha, este soufflé está maravilhoso!", ela quase poderia ter chorado, com prazer infantil.

Ah! O que fazia com que ela se sentisse tão terna com todo mundo, hoje? Tudo era bom, tudo estava certo. Tudo o que acontecia parecia encher de novo até a borda sua taça de felicidade.

E havia ainda, no fundo de sua mente, a pereira. Ela estaria prateada, agora, sob a luz da lua do pobre Eddie, prateada como Pearl Fulton, que lá estava, sentada, fazendo girar uma tangerina com seus dedos finos e tão pálidos que um raio de luz parecia sair deles.

O que, na verdade, não podia compreender, o que era miraculoso, era como percebera o estado de espírito de Pearl Fulton de modo tão rápido e exato. Porque ela não tinha a menor dúvida de estar certa e, no entanto, em que podia se basear? Menos que nada.

"Acho que isso acontece muito, muito raramente entre mulheres. Nunca entre homens", pensou Bertha. "Mas enquanto eu estiver fazendo o café, talvez ela me "dê um sinal", da sala de jantar."

O que queria dizer com isto ela não sabia, e o que viria a acontecer ela não podia imaginar.

Enquanto pensava, ela se via conversando e rindo. A vontade de rir fazia-a conversar.

"Eu preciso rir ou morrer".

Mas, ao notar o hábito engraçado que tinha Face de empurrar alguma coisa pelo decote abaixo — como se ela tivesse ali uma reserva de nozes ou algo assim — teve de fechar as mãos com tanta força a ponto de enterrar as unhas nas palmas das mãos, para não rir demais.

Tinham acabado, por fim. "Venham ver minha máquina de fazer café", disse Bertha.

"Só a cada quinze dias temos uma nova máquina de fazer café nesta casa", disse Harry. Desta vez Face pegou Bertha pelo braço; Pearl Fulton inclinou a cabeça e seguiu-as.

O fogo tinha-se reduzido na sala, para tornar-se um crepitante e rubro "ninho de filhotes de Fênix", segundo Face.

"Não acendam as luzes, por enquanto. Está tão agradável!". Ela agachou-se perto do fogo. Sempre tinha frio... "quando está sem sua jaqueta de flanela vermelha de mico de realejo, é claro", pensou Bertha.

Naquele momento Pearl Fulton "deu o sinal".

"Vocês têm um jardim?" disse a tranqüila voz sonolenta. Foi tão refinado da parte dela que tudo o que Bertha pode fazer foi obedecer; atravessou a sala, afastou as cortinas e abriu aquelas longas janelas.
"Lá", suspirou.

E as duas mulheres permaneceram de pé, uma ao lado da outra, olhando para a esguia árvore florida. Embora o ambiente estivesse tão tranqüilo, a pereira parecia a chama de uma vela a alongar-se, apontar para o alto, tremer no ar brilhante, tornando-se cada vez mais alta enquanto elas olhavam, até quase tocar os bordos prateados da lua redonda.

Quanto tempo elas ficaram ali? Ambas como que presas àquele círculo de luz sobrenatural, compreendendo-se perfeitamente uma à outra, criaturas de um outro mundo, e perguntando-se o que iriam fazer neste mundo com todo aquele alegre tesouro de felicidade que queimava em seus peitos e caía, como flores de prata, de seus cabelos e mãos?

Para sempre? Por um momento? E Pearl Fulton pareceu ter murmurado: "Sim, isso mesmo." Ou Bertha sonhara isto?

Então a luz foi acesa, Face fazia o café e Harry dizia: "Minha querida Senhora Norman Knight, não me pergunte pe!a minha filha. Eu jamais a vejo. Não terei por ela o menor interesse até o dia em que tenha um amante", e Mug tirou o monóculo, e tornou a colocá-lo, e Eddie Warren tomou seu café e colocou a xícara no lugar com um rosto angustiado, como se ele tivesse engolido uma aranha e percebido o que fizera.

"O que eu quero é dar lugar aos outros jovens. Acho que Londres está fervilhando com excelentes peças ainda não escritas. Quero lhes dizer: Aqui está o teatro; vão em frente!".

"Sabe, querida? Vou decorar uma sala para os Jacob Nathan. Estou muito tentada a fazer um projeto tipo peixefrito, com o encosto das cadeiras em forma de frigideiras e lindas batatas fritas espalhadas por toda parte nas cortinas".

"A dificuldade com nossos autores jovens é que eles são ainda demasiadamente românticos. Ninguém deve se lançar ao mar contando que não vai enjoar e dispensando uma bacia. Bem, por que não terão eles a coragem de usar essas bacias?".

"Um poema chocante sobre uma menina que foi violentada por um mendigo sem nariz, num pequeno bosque".

Pearl Fulton sentou-se à vontade na poltrona mais baixa e mais funda, e Harry ofereceu cigarros a todos. Pela maneira como ele se pôs à frente dela, sacudindo a caixa de prata dizendo asperamente "Egípcio? Turco? Virginiano? Estão todos misturados", Bertha constatou que ela não apenas o aborrecia; ele realmente não gostava dela. E deduziu, pelo modo com que Pearl disse "Obrigada, não vou fumar", que ela também o sentira, e se magoara.

"Não tenha essa antipatia por Pearl, Harry! Você está redondamente enganado a respeito dela. Ela é maravilhosa, maravilhosa! Além disso, como você pode pensar de modo tão diferente de mim, sobre alguém que significa tanto para mim? Tentarei contar-lhe mais tarde, quando estivermos na cama, o que está acontecendo. O que eu e ela estamos compartilhando".

A essas últimas palavras, alguma coisa estranha e quase aterrorizante penetrou na mente de Bertha. E essa coisa cega e sorridente sussurrou-lhe: "Logo essas pessoas irão embora. A casa ficará tranqüila, tranqüila. As luzes serão apagadas. E você e ele ficarão a sós um com o outro, no quarto escuro, a cama quente...".

Ela saltou da cadeira e correu para o piano.

"Que pena que ninguém toque!" — bradou. "Que pena que ninguém toque!".

Pela primeira vez na vida Bertha Young desejou seu marido.

Ah! Ela o amava! Ela o amara sempre, é claro, mas com outras formas de amor, não com o que sentia agora. E também, é claro, ela havia compreendido que ele era diferente. Haviam discutido isto inúmeras vezes. Ela havia se afligido horrivelmente, a princípio, ao descobrir sua própria frigidez, mas, com o passar do tempo, isso deixara de incomodá-la. Havia tanta franqueza entre os dois, eles eram tão bons companheiros! Nisso estava a grande vantagem de serem modernos.

Mas agora — era com tesão! Com tesão! A palavra doía em seu corpo em brasa. Era a isto que o seu sentimento de felicidade tinha levado? Mas então, então...

"Querida" — disse a Sra. Knight —, "é uma pena, mas você sabe que somos vítimas do tempo e do horário do trem. Moramos em Hampstead. Foi uma noite tão agradável!".

"Vou acompanhá-los até a porta", disse Bertha. "Foi um prazer tê-los conosco, mas vocês não podem perder o último trem. É tão desagradável isto, não é mesmo?".

"Antes de sair, você aceita um uísque, Knight?" convidou Harry.

"Não, obrigado, amigo velho".

Àquelas palavras, Bertha despediu-se dele com um forte aperto de mão.

"Boa-noite, até outra vez!" gritou ela do alto da escada, sentindo como se uma parte de si estivesse se despedindo deles para sempre.

Ao chegar à sala, encontrou os demais convidados preparando-se para sair.

"Então, você pode fazer parte do trajeto em meu táxi...".

"Eu lhe agradeço muitíssimo por não ter outra vez de enfrentar sozinho uma corrida de táxi depois da terrível experiência da vinda até aqui".

"Vocês podem tomar um táxi logo no fim da rua, há um ponto lá. Não terão de andar mais que uns poucos metros".

"É mesmo? Que bom! Vou vestir meu casaco".

Pearl Fulton encaminhou-se para o vestíbulo e Bertha a ia seguindo, quando Harry quase puxou-a para trás.

"Permita-me ajudá-la".

Bertha viu que ele tinha se arrependido de sua rudeza e deixou-o à vontade. Em certas coisas ele era um menino — tão impulsivo — tão simples.

Ela e Eddie foram deixados perto da lareira.


"Você já viu o novo poema de Bilke "Mesa de Convidado"?" perguntou Eddie, baixo. "É tão maravilhoso! Na última Antologia. Você tem um exemplar? Gostaria muito de mostrá-lo a você. Começa por uma belíssima linha: "Por que deve ser sempre sopa de tomate?".

"Sim", disse Bertha. Em silêncio, encaminhou-se para uma mesa, no lado oposto à porta, e Eddie acompanhou-a, também silencioso. Ela pegou o livro e entregou-o ao amigo; não tinham feito o menor ruído.

Enquanto ele o folheava, ela levantou a cabeça, olhando para o vestíbulo. E viu... Harry com o agasalho de Pearl Fulton nos braços e esta, de costas para ele, com a cabeça inclinada. Ele atirou o casaco para um lado, colocou as mãos nos ombros dela, e virou-a com violência para ele. Seus lábios diziam: "eu te adoro", e Pearl pousou os dedos finos sobre o rosto dele e sorriu aquele seu sorriso sonolento. As narinas de Harry tremiam; os lábios ficaram repuxados para trás, numa crispação horrível, enquanto ele sussurrava: "amanhã" — e, piscando os olhos, Pearl disse: "sim".

"Aqui está", disse Eddie. "Por que deve ser sempre sopa de tomate?". É uma verdade tão profunda, não acha? Sopa de tomate é tão incrivelmente eterna!".

"Se você preferir", dizia a voz de Harry, bem alto, no vestíbulo, "posso chamar um táxi pelo telefone".

"Não é necessário", disse Pearl Fulton e, chegando até Bertha, estendeu-lhe os dedos delicados.

"Até logo. Muito obrigada."

"Até logo", disse Bertha.

Pearl conservou os dedos da amiga entre os seus por um momento.

"Como é linda, a sua pereira", disse ela, baixinho.

E se foi, seguida por Eddie, como o gato preto acompanhando o gato cinzento.

"Vou fechar a casa", disse Harry, estranhamente tranqüilo e contido.

"Sua linda pereira...".

Bertha correu para as janelas largas do jardim. "Deus! O que vai acontecer agora?".

Mas a pereira estava tão linda como sempre, tão imóvel e florida como sempre."


¹ Tal como saudade em português, bliss é uma palavra inglesa sem correspondente exato em outras línguas. Êxtase, felicidade total, euforia, há muitas traduções possíveis, mas nenhuma atende a todas as nuances da palavra original. Preferimos felicidade, simplesmente, por ser a opção mais simples, não excessiva, embora fique faltando alguma coisa. (N. da T.).

² "É uma queda triste, muito triste!" Em seguida: "Quando o carrinho do bebê vem para o vestíbulo".

³ "O Amor em Dentes Postiços".

25 de jul. de 2011

Texto de Fernanda Young sobre Amy

"Quem não tiver uma Amy Winehouse dentro de si que se apresente.
Vai se apresentar para uma platéia vazia, obviamente, pois nessas ninguém está interessado. Mulheres que não admitem a sua dor – aquelas que são perfeitamente esquecíveis – não merecem nenhuma poesia, ou rascunho, ou rápida melodia, pois se recusam a abrir mão do conforto de uma farsa em nome de uma verdadeira vocação: a de sofrer belamente.
O Drummond escreveu que “a dor é inevitável, mas o sofrimento é opcional”. Um verso bonito, além de sábio, porém tipicamente masculino. Mulheres não sofrem por opção, sofrem por evolução. Nós sofremos porque percebemos coisas que os homens ainda não são capazes. Talvez, um dia.
Não há, portanto, a mulher que não sofra – há a que não se mostra. Já que o sofrimento é, para nós, uma espécie de vestido lindo, antigo e bem adornado; um Paul Poiret. À nossa disposição, no cabide. Então usaremos essa roupa, não tenham a menor dúvida. E algumas de nós o farão em público, deslumbrantemente.
Como é o caso da Amy. Você olha para ela e vê que aquela é sua maior aptidão: existir sob esse manto raro, por vezes sombrio, que a cobre.
Não há nada em Amy Winehouse que não seja genuíno, e isso consegue ser gritante em sua música suave enquanto doce em sua aparência rude. Atraente e repugnante ao mesmo tempo. Linda e digna de pena.
Ora, pode haver imagem mais explícita da crucial inconstância feminina? Óbvio que é disgusting vê-la toda borrada, sem um dente, com sapatilhas a lhe denunciar as picadas que dá nos pés. Mas também é maravilhoso vê-la tão pequena, antiga de tão moderna, na medida que só os autênticos conseguem ser, e se equilibrar. Mesmo que essa idéia, a de equilíbrio, não pareça muito adequada à Amy.
Para mim, é. Amy Winehouse é um acontecimento secular, tipo Billie Holliday, Edith Piaf. A gente não tem como exigir higiene, ou conduta, ou senso de preservação, ou auto-estima, dessas mulheres. Seria pedir demais. Como dizer para essa moça o que ela talvez devesse ouvir?
“Ei, Amy, deixe esse cara pra lá, ele não vale tanto a pena.”
“Ei, Amy, faz o seguinte: toma no máximo cinco cervejas quando for ao pub.”
“Ei, Amy, fume seu baseado, mas deixe o resto de lado.”
Imagina a cara que ela iria te olhar?
Pela Amy Winehouse, sinto essa contradição, acho, parecida com a de todas as mulheres.
Eu me identifico com a delinqüente, e a mulherona que cobre o Blake de porrada, mas me preocupo, como uma mãe com uma filha, a ponto de rezar por ela todas as noites.
Uma reza sincera, para que Deus a proteja, igual faço pelas minhas meninas.
Amy, olha só: você é tão jovem... E quando fico emocionada tenho essa mania, cafona e burra, de usar reticências... Mas não!... Para a Amy Winehouse, não cabem emocionalidades baratas.
A triste junkie que habita em mim não suportaria parecer uma mãezona dócil que faz promessa.
Então, mais uma dose. Por que que a gente é assim?
Por que bad boys são “os fodões” e bad girls são “as fodidas”? Por que os bad boys são símbolo de liberdade e as bad girls são presas para servir de símbolo? Por que bad boys são assim por rebeldia e as bad girls são assim por sem-vergonhice? Aparentemente, o mau comportamento ficou de fora das conquistas feministas.
Então que seja esta nossa nova luta: pela igualdade de direito de errar. Direito de fazer o que não se deve. De chegar em paz ao fundo do poço.
Dean Martin, Frank Sinatra, Sammy Davis Jr. e aquele outro, que eu esqueço o nome, bebiam todas, consumiam tudo, comiam qualquer uma – e eram o charmosíssimo “rat pack”. Britney Spears, Lindsay Lohan, Paris Hilton e aquela outra, que eu também esqueço o nome, bebem uns champanhes a mais, tomam uns analgésicos, dão umas batidinhas de carro – e são as vadias bêbadas e drogadas de Hollywood.
É, o machismo acabou só para as caretas. Para as doidas continua valendo. Acho, inclusive, que as próprias mulheres têm culpa nesse atraso.
Notoriamente mais competitivas entre elas, não competem apenas com a colega do lado, mas com todas as mulheres do mundo. De Marilyn Monroe a Anna Nicole Smith, todas morreram sem uma amiga do lado. Por quê? Porque mulheres não são companheiras na sarjeta. Homens são.
Ou seja, encontramo-nos no ponto em que, juntos, chegamos.
Não sei se tem alguém torcendo contra a Amy Winehouse, no momento, mas, se tiver, é mulher. Eu? Eu torço por ela mais do que pela seleção brasileira." - Por Fernanda Young

23 de jul. de 2011

Amy Winehouse - Bye bye little girl black



Hoje é um dia muito triste. Meu coração soprano, hoje é barítono e chora grave e rouco. Minha little girl black se foi. Mamãe me deu a notícia por telefone enquanto eu estava fazendo feira. Chorei com as sacolas na mão como se chorasse por uma amiga querida. Amy era como uma amiga. Não sou muito tiete, mas meus poucos ídolos são como amigos, que me acompanham de longe habitando minhas histórias imaginárias, meus dramas subjetivos, assoprando minhas feridas, fazendo companhia nos momentos de incompreensão total. Muitos artistas que admiro e gosto são apenas músicas, se tornam som sem dono, voz sem rosto. Mas Amy foi como a Janis em minha adolescência: quando a escuto é como se ela cantasse para mim. Sua música é viva, tem sua presença. Minhas vivências sempre têm cheiros e trilha sonora. Amy embalou alguns dos momentos mais importantes em minha vida. Quando me separei e fiz uma “rehab” sentimental na casa dos meus pais, “Back to black” e “Love is a losing game” foram a perfeita tradução de minha dor e eu não me sentia tão sozinha. Ela me entendia. Não me esqueço de uma noite, a mais dolorida de todas, em que o mundo dormia e eu só sentia. “Love is losing” ressoava incessantemente em minha cabeça, como a legenda de algo que ainda não tinha significante possível. E quando meu coração começou a pulsar novamente, “Tears dry on their on” me dava aquela esperança de continuar, porque afinal, eu já sou crescidinha “and in my way, in this blue shade, my tears dry on their own”. Ela também é trilha de meu amor! Eu e minha companheira dançamos muito ao som de Amy. E foi a primeira de nossa lista de casamento. Na verdade, uma das poucas orientações ao DJ foi: muuuuita Amy Winehouse. Todo mundo pirou e celebrou o amor ao som de nossa louca amante inveterada. Quando ela veio ao Brasil tive certeza de que essa seria a minha única oportunidade de vê-la. Eu sabia que Amy não suportaria muito tempo. No dia do show me senti novamente adolescente. Olhos pintados de gatinho. Ônibus de excursão. O dia parecia não passar. Não via a hora de finalmente ver minha diva trash. E claro, todos nós dividíamos a apreensão e a incerteza de que entraria para seu último show no Brasil. A cada minuto de atraso meu coração palpitava e eu pedia com muita força que ela só fizesse mais esse, pois eu estava ali, no meio de uma multidão que se espremia, só para vê-la. Quando Amy entrou foi muito emocionante e chocante. Ela era realmente linda em sua singularidade. Sua peruca reinventada, sua perninha palito balançando sem ritmo. Mas também era de uma fragilidade indescritível. Miúda demais para aquele palco de super produções, Amy não conseguia se dirigir ao público. Quando olhava para frente e via aquele mundaréu de gente, abaixava a cabeça e bebia seu copo. Quando saía do palco todos ficávamos tensos, com medo que ela não retornasse. A banda também parecia não relaxar muito, e estar a todo o momento pronta para acudir mais um passo cambaleante. O início, como todos sabem, foi meio confuso. Trocava as letras, atrasava o andamento. Mas só quem estava lá sabe o que é escutá-la quando ela está toda presente, solta, Amy. Era uma potência tão tocante e dolorosa. Realmente emocionante. O show foi curto. Acho até que mais longo do que ela gostaria. Era tudo muito grande para aquela menina frágil e intensa. Seu show deveria ser pequeno e intimista. Minha amiga disse algo que acredito ser o que mais exprime a Amy que vimos: ela parecia uma criança perdida no parque. Dava muita vontade de vê-la cantar, e ao mesmo tempo, se eu pudesse a pegaria pela mão, tiraria de lá, e lhe diria, “tudo bem, tudo bem”. Ela despertava uma vontade de cuidar, sabe? Ao final, fomos embora com um aperto no peito, como uma despedida. Foi tão marcante e fugidio... Como ela, que viveu intensamente e acredito que dolorosamente. E se foi. Hoje estou de luto por minha amiga. Bye Amy! Espero que alguém lhe pegue pela mão e cuide de você.

"Back to black, back to nothing. No more wine in the house" (Claos Mozi)

21 de jul. de 2011

Das vantagens de ser bobo


Tenho tido uma curiosa mudança de valores. Sempre me interessaram os inteligentes, os estudados, os eruditos. Porém, ultimamente tudo isso anda me cansando bastante. Tenho notado que muitas vezes o saber acaba deixando as pessoas mais vazias. E chatas. Discussões por discussões, daquelas, que uma amiga minha diria: de um quilo não sobrou cem gramas. Porque a conversa vira um infindável rebatimento de argumentos só para provar que um está mais certo que o outro. E o se sobressair como finalidade única, descola o papo da vida vivida, e dali, nada realmente útil se tira. Ainda continuo sendo caxias porque também tenho amor às criações, e não faço apologia à burrice. Mas tenho gostado de me fazer de boba, meio sonsa sabe, para ir vivendo secretamente do meu jeito, com algumas idéias tolas que muitas vezes nem ouso falar em voz alta. Tenho me dedicado também a encontrar beleza e esperteza nos seres cotidianos. Nossa, como são mais interessantes! Não precisam perder tempo em ficar tentando provar. São simplesmente o que sabem. E são muito mais criativos porque não têm que se restringir a nenhuma teoria, que não a deles próprios. Acolhem sem preconceito o que lhes vêm à cabeça. E ainda, não ficam angustiados quando não entendem. E esse é o maior ensinamento para mim. Suportar o não entender. Acolhê-lo em meu corpo antes que ele vire mente e fique chato, descoberto, como tudo. Ai, como é vivo o não saber, o não entender. E como é bom para mim, uma escorpiana típica (que tem a terrível tendência paranóica a dissecar minuciosamente tudo o que lhe chega) experimentar a beleza da estranheza. E nesse meu momento de amor à simplicidade e à bobeira acabei encontrando um texto de Clarice (cabeções de plantão: Clarice vale, pois ela a gente entende com o corpo), chamado “Das vantagens de ser bobo”. Tão esperto em sua bobalhice que vale algumas citações:
- a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar e, portanto, estar tranqüilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado.
- ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil. Por isso é que os espertos não conseguem passar por bobos.
-os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham a vida.
-é quase impossível evitar o excesso de amor que um bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.
E pra finalizar, (essa é dedicada aos meus conterrâneos mineiros): há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir bobo com burro, com tolo, com fútil). Minas Gerais, por exemplo, facilita ser bobo. Ah, quantos perdem por não nascer em Minas!

18 de jul. de 2011


"Apesar de tudo, ainda acho que as pessoas são realmente boas de coração" (Anne Frank)

Contratempo



Coisas que acontecem no contratempo
Não se sujeitam ao consenso
Ficam no fundo
Enquanto o resíduo perece
Sabedorias feitas na manga
Servem ao estado presente
Ficam distinto(s)
Enquanto a maioria embarga
Se a relação do contratempo
E do tempo presente
Assimilarem
Não se precisava de viagens (asm)(cosm)áticas
As teorias seriam atendidas
Mas a inteligência limita a autonomia humana

13 de jul. de 2011

Para James: praticando poesia

discurso fluente como ato de amor
incompatível com a tirania
do segredo

como visitar o túmulo da pessoa
amada

a literatura como clé, forma cifrada de falar da paixão que não
pode ser nomeada (como numa carta fluente e "objetiva").

a chave a origem da literatura
o "inconfessável" toma forma, deseja tomar forma, vira forma

mas acontece que este é também o meu sintoma, "não
[conseguir falar"=
não ter posição marcada, idéias opiniões, fala desvairada.
Só de não-ditos ou de delicadezas se faz minha conversa, e
[para não
ficar louca e inteiramente solta neste pântano, marco para
[mim o
limite da paixão, e me tensiono na beira: tenho de
[meu (discurso)
este resíduo.
Não tenho idéias, só o contorno de uma sintaxe (= ritmo).
Ana Cristina César

11 de jul. de 2011

"Nestas circunstâncias o beija-flor vem sempre aos milhares"


Este é o quarto Augusto. Avisou que vinha. Lavei os sovacos e os pezinhos. Preparei o chá. Caso ele me cheirasse... Ai que enjôo me dá o açúcar do desejo.
Ana C.

Carta de Caio Fernando Abreu à Adriana Calcanhoto

Voltei a devorar o livro Cartas de Caio Fernando Abreu. A cada leitura me admiro, rio muito, choro, me identifico e tenho surpresas como essa.

"Adriana C.

Minha sempre deusa, continuo anadando pelo mundo, chorando ao telefone, prestando muita atenção, divertindo gente, a fome dos meninos da Yoguslávia nas ruas ricas da West-Berlim dói tanto ou mais quanto os nigrinhos do Rio, há dez meses acordo e não tenho ninguém do lado - os meus amigos, cadê? - vou/irei à Tchecoslováquia, talvez Hungria, Jakarta, mas perdi alguma coisa no Brasil, "à tarde maria dorme", tenho medo, matam turcos e a estrada é enorme, mas tua voz e tua música me aconchegam entre Paris/Amsterdam/Berlim/Praga/London/ tudo é muito igual e belo os alemãezinhos ao sol do verão fugaz deles. Te mando retalhos e amor.

Caio F." Berlim 01.07.93 (cartão)

9 de jul. de 2011

All Star


À primeira menina ruiva foi pé-ante-pé, alguns emails anônimos. Nada além. Uma única conversa ao fim de um ano platônico. “Como pode gostar de alguém que não conhece? Sei lá, sou assim mesmo. Amo Janis Joplin, amo Ana Cristina, Caio Fernando, Luther King, minha bisavó. Todos esses seres imaginários”. Mas daí ela foi. E eu fiquei. Tudo bem e tchau. Um amorzinho alaranjado. Daí veio a perdida, míope e descabelada. Assim, mais louca que eu. Duas meninas numa bicicleta com garupa e com cestinhas para as compras, uma casa bagunçada, pé de maracujá e alguns sonhos coloridos. Na vida real tudo isso se desfez. Ela foi. E eu fiquei. Morri e remorri “a hundred times”. E foi no rasgo, lapso de mim, que meu vermelho amor ressoou. Aquela que eu passei a amar antes do sol. Fui clichê. Mãos dadas na beira do mar, música nossa, bolha de amor, tatuagem, bilhetes pela casa, aliança com diamantes (bem pequeno porque a gente continua sem grana). Sem pé-ante-pé, bem ao meu estilo. Barulhenta, dançando pelada pela casa, deixando meus lenços pelos cantos, arranhando a lua cheia. Voracidade de gata ranheta. Ela não foi. Ficou comigo nesse mundo que é tão nosso. Banheiro rosa, conchas, All Star, xícaras de bolinhas, creme para cachos, filme antigo.

Ai baby fica comigo até eu acabar de contar suas sardas infinitas?

6 de jul. de 2011

Nossa lua turca


E finalmente as nuvens se dissiparam e a gente pôde ver novamente nossa lua turca e sentarmos juntas nela e balançar nossos pés. Às vezes nossos dias sangram e é assim mesmo no encontro de duas mulheres. E a cada gota você me ensina a cuidar mais um pouco. E a falar antes de ensurdecer de silêncio. E quando escorro eu te ensino a dançar no meu ritmo. E te ensino a abrir um pouco ao sol da meia-noite. E tem a confiança de que o caos se arranja. E de que depois de tudo vem o cio. E os beijos-mergulhos. E o cheiro de fêmea. E a mansidão do depois. E algumas manchas de sangue (as borras dos encontros). E o mais lindo: alguns cachos avermelhados. Baby, é tão linda sua ruivosidade...

5 de jul. de 2011

Alice no país das maravilhas



"Nesta direção", disse o Gato, girando a pata direita, "mora um Chapeleiro. E nesta direção", apontando com a pata esquerda, "mora uma Lebre de Março. Visite quem você quiser quiser, são ambos loucos."

"Mais eu não ando com loucos", observou Alice.

"Oh, você não tem como evitar", disse o Gato, "somos todos loucos por aqui. Eu sou louco. Você é louca".

"Como é que você sabe que eu sou louca?", disse Alice.

"Você deve ser", disse o Gato, "Senão não teria vindo para cá."

28 de jun. de 2011

Flor garduño

Lembranças



Um dia desses um paciente me disse que uma de suas maiores surpresas não foi descobrir que poderia ser diferente, mas que a despeito de qualquer mudança o passado não se apagava. Mesmo na gaveta fechada lá de dentro ele retornava assim, num sonho, num flash de pensamento. Eu sempre me pego pensando nisso. Não sou uma saudosista, mas freqüentemente sou assaltada por alguma memória quase insignificante, daquelas que no momento vivido pareciam não ter importância alguma. Outras vezes vem a lembrança de algo que você nunca imaginou que seria lembrança, pois acreditava que aquilo sempre estaria com você, mas que pelo movimento da vida você acaba esquecendo ou simplesmente perde o sentido. Nas lembranças tudo isso se mistura. Há pessoas distantes que passaram por minha vida, mas que retornam em mim, e penso no que teria acontecido com elas. Como está a menina mais quieta da quarta série que só usava bermudas, mesmo no inverno? Será que ela floresceu? Será que foi fazer contabilidade? Será que teve filhos? Será que continua solitária? Será que ela também se lembra de mim como eu me lembro dela? Às vezes me sinto o cheiro do meu primeiro beijo, brincando de casinha. Cheiro bom de saliva de criança. Cheiro de infância. E o cheiro do Halls da adolescência? Lembro-me do piso vermelho queimado, bem perto do meu rosto, num tombo que levei da escada da casa onde nasci. Da primeira barata que vi, ainda bebê, e se tornou objeto de minha fobia. Da mão macia de meu avô. Uma pele tão fina com os dedos enrugados, longos e rosados (vovô tinha os dedos rosa shock!). Lembro-me dos pés da minha mãe, num chinelo Samoa azul, balançando ao som da rádio Itatiaia, e eu brincando embaixo da prancheta para ficar perto enquanto ela trabalhava. O olho azul doído, emoldurado em cílios queimados de uma estranha na rua (muitas vezes me pus a imaginar como ela os queimou. Será que ela tentou acendeu um cigarro no fogão?). Não esqueço a luz da rua aonde ia para ficar com os meninos, e o pé de amora que tinha lá. A primeira vez que andei de bicicleta sem rodinhas e meu pai me soltou (ali aprendi que quem te ama pode também te soltar ladeira abaixo...). A lembrança da primeira vez que uma amiga me feriu, dizendo que só ficava comigo no recreio para comer meu lanche, que eu era “chatinha” e que preferia as outras meninas. Algumas lembranças que você não gostaria de se lembrar, mas lembra. Lembranças singelas, de uma casa como as outras, de um beijo como os outros. Mas que permanecem em você por muito tempo. Ou para sempre naquela gavetinha que se abre vez ou outra enquanto caminha, escuta uma música ou abre a janela de manhã. Você muda, mas é sempre a mistura daquele olhar dolorido, daquela menina tímida, daquele cheiro doce. E tudo isso ainda te admira. Tudo isso é você.

26 de jun. de 2011

Amargarida

Este é um texto antigo. Um fluxo de pensamento dolorido e desesperado. Como diz o Caio Fernando, é minha "ovelha negra". Me gusta.


Queria quebrar tudo. Deitava na posição fetal e esperava. Esperava algo acontecer. Talvez que a coragem de quebrar lhe assaltasse de repente, e não fosse mais possível conter. Conter aquele medo de quebrar coisas importantes. Imaginava estilhaçar os pratos, um por um. Depois os copos. E as xícaras. Socar as janelas, e arrebentar os vidros. Talvez cortar as mãos. Depois passar às prateleiras e derrubar tudo de uma só vez. Tudo. Cada livro. Cada souvernir. Cada cd. Mas daí pensava. Gostava dos cds da Maria Bethânia. Também tinha aquela mulher de argila oferecendo o ventre aos deuses que a amiga lhe dera. E o telefone amarelo-ovo que haviam demorado tanto pra encontrar. Sabia que não acharia outro igual. Tinha medo de quebrar. Ficava então, imóvel. O tempo que agüentasse. O tempo que agüentasse sua cabeça pensando. E pensando. E pensando. Como disco velho arranhado. Ou todas aquelas coisas desconexas, que teimavam em se encadear numa lógica desconhecida e insuportável. Amor ódio culpa riso os lugares ir embora ficar os gatos terapia livros saudade falta coragem escrever comida cortar margaridas despetaladas desespero sem paz separação fragilidade Caio Fernando mãe comédia inimigos amigos amantes pacientes fórmulas violência processo perfume breu cores lâmpada solidão nó. "E de repente olhaste uma flor sobre uma sepultura e disseste que gostava tanto de amarelo e eu disse que amarelo era tão vida e sorriste compreendendo e eu sorri conseguindo e vimos uma margarida e nem sequer era primavera e disseste que margarida era amarelo e branco e eu disse que branco era paz e disseste que amarelo era desespero e dissemos quase juntos que margarida era então desespero cercado de paz por todos os lados"*. Era margarida despetalada. Só desespero. Sem espinho. Apenas aquele caule frágil, verde, com penugem. Antes fosse rosa. Rosa vermelha despetalada. Caule duro e espinhosa. Não pudera escolher. Simplesmente era. E quando constatava isso, acusava a outra de existencialista. Mas ela o era. Só sabia ser trágica. Na verdade, só aceitava ser trágica. Mas se pegava dramática e risonha. Gargalhava e chorava, junto. Odiava. Tragicomédia, odiava. Como era possível rir de desespero? Nunca entendera a prima. Quando criança, a havia visto rir de desespero. Rir de medo. Como era possível? Sentia raiva quando se encontrava rindo, despetalada. Como parar o processo? Margarida ao vento sozinha no matagal despetalando. Sozinha de desespero e riso. Angústia. Fragilidade. Foi plantada numa redoma, mas quis crescer em meio ao mato selvagem. Irmã das ervas daninhas. Estupro do vento. Existe deixar ser estuprada? Ou estupro é só quando a gente não quer? Ou também é quando o outro acha que a gente quer, mas a gente não quer? Uma margarida só é margarida se puder ser despetalada? Bem-me-quer, mal-me-quer, bem-me-quer, mal-me-quer... até sobrar só desespero. Talvez eu seja dessas mesmo, que só serve pra ser despetalada ao vento, ou pelas mãos de uma mocinha decepcionada com o amor. Daquelas que se deixam estuprar só pra entender que a redoma é mais feliz. Sem brisa e sem estupro. Só sombra e água fresca, como lhe disseram. Mas essa vontade de nascer no mato não teria vindo daquelas mãos que lhe regavam? Uma vez, teve uma tarefa na escola. Teria que regar dois grãozinhos de feijão no algodão. Um com muito amor. E o outro uma raiva danada. O feijãozinho feliz crescia que era uma beleza, tinha que trocar de vaso, amarrar pauzinho de churrasco no caule pra não tombar. O outro não vingava. Secava. O professor esqueceu do dever de casa, e a gente nem pôde falar sobre as mudas de estimação. Mas tenho a lembrança de que entendi que cresciam bem do jeito que a gente se derramava sobre elas. Talvez aquelas mãos cuidadosas estavam cansadas de cuidar. Talvez sua vida fosse cuidar. Mas quem disse que a gente escolhe ser jardineiro ou margarida? Só ficava lá, ao vento, desnudada. Sem-paz-com-paz-sem-paz-com-paz. Mais desespero que paz. E seus pés estavam presos ao chão. À terra. À mãe. Cordão umbilical. Posição fetal em meio às cobertas, às roupas e meias sujas jogadas pelo quarto. Só imaginando levantar e quebrar tudo. Tombada pelo vento forte de outono. Arraigada. Imaginando os lugares para onde voaria cada uma de suas pétalas. E com medo. Muito medo de quebrar.
*Caio Fernado Abreu

16 de mai. de 2011

O tempo leva tudo, exceto nossa história


Há algumas semanas recebemos a notícia de que minha avó estava doente. Vovó sempre foi a matriarca da família. Nem cheguei a conhecer meu avô. Falecido antes de meu nascimento, nunca notei sua falta. Vovó sempre ocupou todos os espaços. Ela chegou a morar conosco quando eu era pequena e mais precisava de presença. Papai e mamãe sempre trabalharam muito, e era ela quem passava a maior parte do tempo comigo. Vovó amassava inhame no feijão preto e me dava de colher. Fazia o mesmo com o angu. Era a única que conseguia me alimentar sem muito esforço. Foi ela que me ensinou que misturar amarelo com azul dava verde, quando não tinha essa cor para pintar uma árvore do dever de casa. Vovó me fazia chiquinhas e tranças apertadas. E me ensinou a oração do anjo da guarda, que rezo até hoje quando tenho pesadelos. Ela me contava histórias todas as noites, e mesmo que eu sempre pedisse as mesmas, ela repetia como se fosse a primeira vez. Nunca mais escutei a história de João e Maria da maneira que ela contava: um rabinho de rato fazia as vezes do dedinho magro para enganar a bruxa, que se transformava num reluzente cavalo branco depois de ser jogada dentro do caldeirão! Vovó também tinha seu lado bruxa, como todas as mães do mundo. Me colocava para descascar alho com as mãozinhas peladas. Quase me matou passando Detefon em minha cabeça com piolhos (ela tinha umas receitas peculiares...). Passei uma tarde toda escondendo meu dedo talhado depois de desobedecê-la e usar a faca afiada para cortar o pão. Mas não havia colo mais acolhedor! Quando ela descobriu os metros de papel higiênico ensangüentados pela casa, me acudiu como só uma avó sabe fazer. Uma vez, quando fiquei doente com esperanças de que mamãe pudesse ficar mais em casa para cuidar de mim, foi ela quem ficou. Fez sopinha e deu banho “tcheco” para não judiar de mim. Quando mudamos para Piracicaba foi dela de quem mais senti saudades. Quando a visitava, eu era novamente a pessoa mais amada do mundo. Ela me pedia pra dormir junto com ela, me fazia escutar suas orações infindáveis, porque tinha que rezar por todos os conhecidos. Sempre respeitou minhas escolhas. Seu amor estava acima dos valores que havia aprendido por toda a vida em sua religião arcaica. Agora, vovó está em uma cama, dependendo do cuidado das pessoas, e não podemos estar lá para acompanhá-la. Eu sei que isso não é o que ela esperava. Por isso talvez esteja desligando sua consciência. Mandou-me o recado de que seu tempo na Terra está acabando, mas que esperará minha visita. Vovó ainda está aqui, de sua maneira (como sempre), entre nós. O tempo é a única coisa realmente democrática no mundo. Ele é implacável com todos nós. Já estou me preparando para quando vovó se desligar completamente e não mais me reconhecer. Não sei como vou reagir quando ela for viver no lugar onde sempre imaginou e nos deixar. Mas para onde quer que ela vá, vovó sempre vai estar em mim. Seus causos, o cheiro do seu feijão, suas receitas envenenadas . Hoje eu cresci, mas estranhamente eu sempre vou ser a neta de chiquinhas cacheadas. E a cada partida eu vou entendendo que o tempo pode levar tudo, exceto nossa história

20 de abr. de 2011

Amor

O que é um grande amor senão um significante maior que todos os outros?

11 de mar. de 2011

Que seja doce



Ando feliz com a vida. Eu que sempre fui dramática, com um rouge a mais como prefiro dizer, estou exercitando um mantra que aprendi em “Os dragões não conhecem o paraíso”, de Caio Fernando Abreu: que seja doce, que seja doce, que seja doce. Lembro-me que aos 13 ficava ansiosa ao pensar nos meus 30. Tinha a idéia fixa de que seria o fim. Nada existia depois disso. Não imaginava a morte. Era simples assim: nada. Hoje estou no alto dos meus 28 anos, com muita história pra contar (meu irmão diz que ter história é sinal de estar ficando velho...). E acabei de sair de minha adolescência. Há uns dois anos atrás falei com minha analista: “pronto, passou, agora não me sinto mais adolescente”. Não sei bem o que isso quer dizer, mas uma palavra boa é serenidade, e outra, confiança. Confiança de que as coisas se resolvem e não vão acabar assim, do nada. Sinto que vou passar dos 30. E se não, não vou me angustiar antes por aquilo que ninguém sabe (um paciente me perguntou o que acontece quando a gente morre. Respondi que não sabia sobre a morte. Só sabia que a vida, a gente vivia). Apesar de fazer planos e sonhar, estou aprendendo a viver mais o presente. E saber que tudo passa, que o tempo ameniza as dores, e muitas vezes torna nossos monstros, formiguinhas (ou ao menos, os prende num lugar onde não nos assustam tanto). Assim, o tempo, além de marcas que vou tentando assimilar em meu corpo, vem me trazendo delicados presentes cotidianos. E vou me habitando cada dia mais. Às vezes transbordada de mim, outras, achando cantinhos mais macios. Tenho esperanças amarelas e um amor. Tenho acreditado nele e na possibilidade de mantê-lo vivo. Tenho andado feliz com a vida.Que seja doce, que seja doce, que seja doce.

6 de fev. de 2011

A dor



E hoje aprendi a querer alguma coisa no que me acontece, mesmo que no início me pareça apenas dor. Nada é em todo escuro. Mas é preciso querer, é preciso lançar luz, abrir o peito. É preciso querer algo no que te acontece. E aquilo que no desespero era dor e dor, te torna, enfim, digno de receber.

28 de jan. de 2011

Ensaios

Novamente a havia procurado. No último encontro prometera a si mesma que não voltaria mais. Já fazia um tempo que seus encontros estavam difíceis. Ela sentava e falava. Falava muito. Precisava aproveitar cada minuto. Mas não sabia o que dizer. Sabe, ela tinha tanta coisa, mas tanta coisa pra dizer que. Na volta, carregava em si, buracos. Sim, buracos. Buracos enormes em seu corpo. Sentia-se vulnerável, frágil, esfolada. Como quando a gente era criança, e voltava pra casa com os joelhos sangrando perna abaixo, o vento batendo e gelando o machucado. Chorando, às vezes segurando o choro, com vergonha dos amigos, esperando chegar em casa e berrar no colo da mãe. Agora não. Agora não era mais assim. Não era mais criança chorona. Nem podia esperar pra chorar em casa, em qualquer canto escondido. Mamãe não passaria merthiolate. Os amigos não zombariam. Não precisava mais deles pra isso. Ela mesma poderia fazê-lo. Daí era assim. Solidão buraco corpo ardendo despelado ao vento esfolado o coração acelerado de medo e pavor do sangue quente pingando pelo caminho não tinha mais pra onde correr por que não era mais criança e adulto não fica chorando por aí por causa de um machucadinho à toa e mesmo se pudesse não choraria por que chorar é para os fracos e ela não é fraca ela é ........ quando chorava sentia-se uma atriz era de mentira não tinha vontade de chorar tá certo que tem aquele bolo solado no peito mas quem disse que angústia é choro a psicologia é um engodo ela não sabe nada é que nem ela que acha que sabe mas não sabe que. E a outra não a ajudaria. Dizia que ela não era fraca e essa era sua grande farsa. Vestia-se de margarida, com macacãozinho verde e aquela cabeça doce, o miolo era o rosto angelical, que piscava infantil, envolto pelas pétalas brancas, feitas de papel machê. Mas viver não era mais um palco. Papai e mamãe não estão na platéia aplaudindo aquelas babaquices ensaiadas para os pais. Mas a outra não entendia. Não entendia que ela era a margarida mais perfeita, nunca errava nenhum passo, e era aplaudida de pé, por todos os outros pais inclusive, que morriam de inveja daquela filha tão graciosa. A outra não entendia que ela nascera para o palco. Era tão boa nisso, que chegava a confundir as falas. Bem, já nem sabia mais quais eram suas. Sensações de estranhamento lhe assaltavam, e não entendia se por que a fala era sua, ou se por que de seu personagem. Como em Cem anos de Solidão, quando em certa altura a gente não sabe mais o que é fantasia, quem era Aureliano, Aureliano Arcadio, Aureliano Buendía. Afinal, quais eram seus personagens? Não saberia dizer. E essa outra vem e a arranca do palco, a arrasta pelo chão até a cochia e vai embora. Deixa ela no escuro, tateando o chão, escutando o espetáculo. Senta-se na primeira poltrona. E diz que o espetáculo foi m-a-r-a-v-i-l-h-o-s-o muito sensível mas poderia ter sido menos trágico talvez um pouco de riso. E ela lá atrás, esfolada, sem poder chorar. As meninas de hoje também não choram, têm que ser fortes. Já era o tempo das pin-ups, amizade. A onda é agüentar. Sangrar e sorrir. Mas, então, a outra vem e diz que não. Personagem também já era. A onda agora é expressão. Esburacar e sentir.

12 de jan. de 2011

Levantou as mãos e sentiu a brisa. Batia de leve. Quente. Tocou. Sentiu depois de muito, algo vindo de fora. Lá fora algo existia. Se ela pudesse, seria como o que se chama júbilo ou epifania. Mas não tinha nome. Era como nada. Antes não existia. Nada antes disso que ela sentiu. As unhas longas e pálidas. Vazava por entre os dedos rangendo baixinho. Fim de tarde. Boa hora pra nascer (mas ela não sabia). O sol se punha amarelo, deixando tudo antigo e mais vivo. O pulso quente levantava a pele em ritmo tímido e dolorido de vida começando. E sentindo o vento discreto ela quase imaginou. Enfim, estava nascendo de novo.

10 de jan. de 2011

Dica: O pequeno Nicolau



Há pouco tempo atrás tive uma alegre surpresa. Depois de uma sucessão de películas que fazem pensar e sentir demais, vivi um encontro leve e despretensioso com “O pequeno Nicolau”. O filme baseado nos livros de René Goscinny tem uma seqüência incrível de créditos iniciais, feita como um livro. E esse ar divertido é mantido durante toda a história, cheia de cenários multicoloridos, criados para ambientar o universo e os medos infantis. Na história, Nicolau é uma criança feliz que deseja que nada mude em sua vida. Isso até ele escutar uma conversa atravessada de seus pais e acreditar que terá um irmãozinho. Com medo de ser deixado pelos pais, Nicolau se junta aos amigos figurinhas e cria planos mirabolantes para mostrar aos pais que é indispensável. A partir daí é uma sucessão de confusões muito engraçadas. Os atores mirins são muito bons e o protagonista, bárbaro, convence sem falar. É uma brisa colorida, uma mistura de Amèlie Poulain com Batutinhas. Vale a pena assistir.