12 de nov. de 2012

12 de set. de 2012

A espera é um delírio


O ser que estou esperando não é real (...) eu o crio e recrio sem cessar a partir da minha capacidade de amar, a partir da necessidade que tenho dele. O outro vem para o lugar em que o estou esperando, para o lugar em que já o criei. E se ele não vem, eu o alucino: a espera é um delírio. (Barthes)


21 de ago. de 2012

Transbordada



Transbordada.
Na exatidão plena,
sem resto para a expressão.
Com você, a mim
não falta nada.
Exceto a palavra.
A plenitiude
tão milimetricamente exata,
não excede
um poro sequer.
A linguagem,
só da boca dolorida.
Débil súplica pela sobra,
banaliza o júbilo.
Só afirmo o amor
quando recuso o verbo.
Do encontro, tudo.
das palavras, nada.

24 de jul. de 2012

Labirinto da solidão


"A solidão, o sentir-se e saber-se só, desligado do mundo e alheiro a si mesmo, separado de si, não é característica exclusiva do mexicano. Todos os homens, em algum momento da vida, sentem-se sozinhos; e mais: todos os homens estão sós. Viver é nos separarmos do que fomos para nos adentrarmos no que vamos ser, futuro sempre estranho. A solidão é a profundeza última da condição humana. O homem é o único ser que se sente só e que procura por um outro. Sua natureza - se é que podemos falar em natureza para nos referirmos ao homem, exatamente o ser que se inventou a si mesmo quando disse "não" à natureza - consiste num aspirar a se realizar em outro. O homem é nostalgia e busca a comunhão. Por isso, cada vez que se sente a si mesmo, sente-se como carência do outro, como solidão."   (Octávio Paz)  (foto: Francesca Woodman)
                 



 

18 de jul. de 2012

Íntimo e impessoal



Tela ligada,
alguns vídeos safados
até tremer de tanto gozar.
Brinquedinhos me distraem
de pensar sobre mim sem parar.
"Eu sou eu":
perversão moderna,
excesso de psicanálise.
Contra masturbação mental:
masturbação.
Por ora, esqueço
minhas leves inclinações suicidas,
ligo o bidê,
aproveito para ler
os grandes clássicos
(que sempre terminam no banheiro).
Saio inspirada para
escrever comprido
e enviar afago, de levinho,
só beijos & amor &.
Sem assinatura.


16 de jul. de 2012



Vai se aproximando agosto. Já sinto o leve afago da melancolia no occipital. Agarro-me aos fevereiros, que eu sei, sempre vêm ao meu encontro. Farejo procurando as frestas solares. Celebro as pequenas-raras flores de inverno. Olho até lacrimejar o céu desnudo, fantasiando nuvens de fevereiro. Os fevereiros me são tão dadivosos!  Prenunciam marços, cheios de águas, que às vezes marejam a alma, e sempre levam aquilo que já não. Mas os agostos insistem em chegar. Reza brava, defumação de fora pra dentro e de dentro pra fora, guia no pescoço (a eterna esperança de enganar o tempo). Não. Não há mandinga que me traga fevereiro. Ou dois setembros. Ou ao menos dois julhos. Insisto em minhas preces por redenção. E fadadas ao fracasso elas vão, curiosamente, tornando-se súplicas pelo inexorável. Minhas inclinações suicidas vão ficando mais e mais macias. Deito a cabeça na frígida mão da angústia. Fecho os olhos e mergulho. Enfim, os irresistíveis agostos. Que eu odeio (que eu amo).

19 de jun. de 2012

Funeral Blues


Pare os relógios, cale o telefone
Evite o latido do cão com um osso
Emudeça o piano e que o tambor surdo anuncie
a vinda do caixão, seguido pelo cortejo. 

Que os aviões voem em círculos, gemendo
e que escrevam no céu o anúncio: ele morreu.
Ponham laços pretos nos pescoços brancos das pombas de rua
e que guardas de trânsito usem finas luvas de breu. 

Ele era meu Norte, meu Sul, meu Leste e Oeste
Meus dias úteis, meus finais-de-semana,
meu meio-dia, meia-noite, minha fala e meu canto.
Eu pensava que o amor era eterno; estava errado 

As estrelas não são mais necessárias; apague-as uma por uma
Guarde a lua, desmonte o sol
Despeje o oceano e livre-se da floresta
pois nada mais pode vir a ser bom como antes era.

Poema: W.H. Auden
Foto: Francesca Woodman

27 de mai. de 2012



Confissões geladas
percorrem o labirinto,
derramam o ar de inverno
dentro do ouvido.
Tento algodão alcoólico
para embebedar o canal.
Prolongo
a tortura da vertigem,
inspiro fundo
esticando o momento.
Procuro seu cheiro silvestre.
Alcançaria nossa primavera?
Insólita fuga,
da certeza tão definitiva
de que agora,
você vai.
Impera-triz:  
o acontecimento precipício:
deito as mãos trêmulas
sobre as orelhas,
e se esvai a última gota
gélida de você.
Quero chorar sua partida,
mas estou seca
e as flores
estão mortas.

(Foto: Francesca Woodman)

17 de mar. de 2012

Ana Cristina Cesar - carta à amiga Cecília


Cecília, minha querida,
Estou sentindo dificuldade real de transar com as pessoas. Parece uma frase muito genérica, que se poderia dizer a qualquer momento da vida. Mas agora tem um sentido mais particular para mim. Me sinto isolada, sozinha, sem amigos. Há os amigos, mas desconfio deles, acho sempre que não gostam de mim. Talvez eu esteja entrando em contato com alguma coisa que sempre foi verdade mas que eu nunca percebi: que realmente eu não tenho relações. Outro dia tive uma depressão forte. Estava sozinha em casa. Percorri o caderninho de telefones. Não tinha nenhum nome que pudesse ajudar. É bem verdade que eu tinha desejo de um colo, de um consolo, que eu mesma preferi não buscar ninguém, era uma barra minha, de uma certa forma não adiantava ninguém. Pensei também que você e Ana Cândida estavam longe.
(Achei um saco escrever essa carta começada e resolvi começar outra. O assunto saiu diferente, mas resolvi deixar essa folha nem sei por quê. Talvez um pouco para reproduzir na correspondência a comunicação oral, onde as frases não podem ser apagadas, onde não se pode eliminar nada).)"

KAMA SUTRA: sobre como conquistar uma mulher


"Dessa maneira, o homem deve fazer aquilo que proporcionar mais prazer à moça, dar-lhe tudo o que ela tiver o desejo de possuir. Por isso, deve obter-lhe brinquedos pouco conhecidos de outras moças. Também pode mostrar-lhe uma bola tingida com várias cores e outras curiosidades. Deve dar a ela bonecas fabricadas com tecido, madeira, chifre de búfalo, marfim, cera, farinha ou terra. Também utensílios de cozinha e imagens em madeira, como um homem e uma mulher em pé ou um par de carneiros, cabras ou ovelhas. Templos feitos de terra, bambu ou madeira, dedicados a várias deusas. Gaiolas para papagaios, cucos, estorninhos, codornas, galos e perdizes. Vasilhas de água de diferentes tipos e de formas elegantes, máquinas de aspergir água, violões, suportes para imagens, banquetas. (...) Em resumo, ele deve tentar de toda a maneira fazer com que ela o veja como o homem que fará por ela tudo o que desejar." (KAMA SUTRA - Vatsyayana)
(foto: Henri Lartigue)



13 de mar. de 2012

Café



Hoje você me deixou um bilhete: "Amor meu,". Assim mesmo, o amor, antes do meu. Não "meu amor", como todos outros. Tão nosso, tão meu, tão seu. Mas antes de qualquer pronome possessivo, amor. Simplesmente amor. Eu vinha sentindo saudades de ser acordada com uma música escolhida pelas suas mãos tão brancas e seus dedos rosados. "Será que o amor se esvai a cada dia do calendário?", eu me pergunto boba, na usual insegurança que lateja nos dias de chuva. Mas eu entrei essa manhã protegendo meus olhos inchados contra o sol das nove horas. Dentro da minha caneca branca de bolinhas cinzas, um pedaço singelo de papel. Instruções sobre o café, sobre o almoço. E apesar de toda a contra indicação de iogurte (suas coisas de acupunturista, porque tenho "uma deficiência de baço"), colocou aquele de cenoura e mel, que amo... Você prometeu, baby, quando nos casamos, na frente de todos os nossos amigos, que todas as manhãs ia cuidar de mim. E mesmo sem trilha sonora, nosso amor tem cheirinho de café, tem bolacha esquisita, geléia, pão alemão, nutella, danoninho, pasta de amendoim ou qualquer outra doideira que você inventa, porque eu sou enjoada pra caramba no desjejum. E nas manhãs preguiçosas, vamos renovando nosso amor. Com seu bilhete cuidadoso nas mãos, de repente e quase desesperadamente, eu anseei por mais um dia no calendário, mais muitos, mais dezenas deles! E o medo do silêncio e do tédio foi arrebatado, mais uma vez, pela ânsia de não ter tempo bastante para experimentar e transbordar em você toda ternura que sinto, a cada xícara de café.
*Baby, jura de pés juntos que me mima assim a vida inteira?

12 de mar. de 2012


"Procurei algo a que apegar-me - e nada encontrei. Mas ao procurar, no esforço para agarrar, para apegar-me, perdido como fiquei, encontrei uma coisa que não buscava - eu próprio. Descobri que aquilo que eu desejara toda minha vida não era viver - mas expressar-me. Percebi que nunca tivera o menor interesse em viver, mas apenas nisto que estou fazendo agora, algo que é paralelo à vida, que faz parte dela e ao mesmo tempo fica além dela. Absolutamente não me interessa o que é verdadeiro, nem mesmo o que é real. Só me interessa o que eu imagino que é, aquilo que eu sufoquei todos os dias a fim de viver. Morrer hoje ou amanhã não me importa, nunca me importou, mas não poder mesmo hoje, depois de anos de esforço, dizer o que penso e sinto - isso me incomoda, me exaspera." (Henri Miller - Trópico de Capricórnio)

26 de fev. de 2012

16 de fev. de 2012

Bodas - parte 2



Todas as vezes que vou a um casamento fico EXTREMAMENTE sensibilizada (assim mesmo, com letra maiúscula). Algo em mim se afirma de uma maneira muito verdadeira e esperançosa. Revisito minha crença no amor, questiono como tenho vivido meus próprios votos de ser o melhor para mim e para o outro numa relação. Tomada pela esperança de um outro casal, seja ele qual for, fico ainda mais apaixonada. Adorno meu coraçãozinho aflito com muitas flores e vou transbordando o amor do outro multiplicado em mim.
Encharcada de tudo isso, escrevi esse texto-presente para a cerimônia de união da Bruna e do Renato, dois amigos muito queridos. E foi ao escrevê-lo que resgatei um texto antigo, minha última publicação no blog que chamei "Bodas - parte 1". Este virou o Bodas - parte 2", mesmo sendo só corpo, nada de número... E viva os encontros e desencontros do amor!

"Um encontro assim, num banco, numa balada, num supermercado. Não. Numa aula da universidade. Sim, algumas aulas. Ela, encantada com a maneira com que ele fazia aquilo parecer tão mais simples e vivo. Ele, encantado com a beleza fresca dela, o modo como entrava na sala, arrumava o cabelo atrás da orelha e abria a bolsa colorida dando um sorriso. Aquele-sorriso-de-sol-de-fim-de-tarde. Daí, happy hour que a turma fazia na casa dele, depois da aula, para tomar alguma coisa e conversar. Um vinho, papo amigável, descobrindo gostos em comum. "Não acredito que esse é seu filme preferido também!” “Pô, essa banda é realmente incrível!” “Você já prestou atenção na maneira como dói quando ela canta o refrão?". Dois vinhos, no canto da sala, descobrindo sensibilidades. "Acho que a gente insiste em mandar o outro embora porque a perda tem a sua beleza, não acha?" “Você também já pensou: estou enganando todo mundo?”. Três vinhos, silêncio, e só eles existiam ali, dentro daquela bolha. E foi naquela bolha, naquela sala, onde eles ficaram, respirando a respiração do outro. Para sempre.
Não. Não foi bem assim. Na verdade, eles são bailarinos. E foi assim que tudo começou: “ela no centro, ao lado dele. Ele lhe ofereceu a mão, e ela aceitou. A mão suada, com um leve tremor, conduziu-a um pouco à frente, e ela, bem devagar subiu a perna. Subiu, subiu, subiu. Ele saltou e a abraçou. Ela respirou e ele a levantou, e girou com ela. Muito suavemente ela colocou os pés no chão, e ele num impulso a levou mais adiante. Ela abaixou o corpo, e caiu na frente dele, ele atrás dela. Ela se preparou. Ele girou, levantou a perna dela, tomou-a pela cintura e voltou a colocá-la no chão. Aí, deixou-a e caminhou até o centro. Então, girou e saltou, girou e saltou. Correu, correu e a tomou novamente, e a lançou em um último impulso. E acabaram bem adiante. Ele caminhou até um lado, ela até o outro. E se encontraram no centro.”* Agradeceram de mãos dadas e nunca mais soltaram.
Bem, na verdade, talvez também não seja exatamente assim como tudo começou. Até porque eles tinham uma mania de inventar o início desse amor. E os amigos, que a cada vez escutavam uma história diferente, acabavam adorando, se identificando e acreditando em cada uma daquelas ficções tão verdadeiras de amor. Porque paixão nascendo é inevitavelmente lindo ou louco. E o que vem depois, tem sua própria trilha sonora, mas o roteiro é (sempre) meio clichê:
depois dos vinhos e das aulas e da dança, algumas peças de roupa foram ficando na casa dele, e ela só voltava para a dela para não deixar a coitada da planta, que não tinha nada a ver com o apaixonamento de ninguém, morrer. Aí ela já recebia a diarista de manhã, e inclusive conseguia encantá-la mais do que as outras que passaram pela vida dele. E ele já comprava o iogurte que ela mais gostava. E um já se tornava especialista em picanha para acompanhar o outro carnívoro inveterado, mesmo que há muitos anos o mais próximo que chegava de uma vaca era quando tomava leite longa vida. E ele acordava no meio da noite só para olhá-la mais de perto (quando ela estava acordada, se ele ficasse assim, olhando muito tempo, ela ficava grilada, achando que ele descobria os defeitos, as sardas, as olheiras). Então, ele guardava o sono dela, e colocava a mão entre o rosto e o pescoço para acalmá-la quando ela chorava em algum pesadelo. E eles já conheciam a loucura do outro. Um com a inclinação levemente neurótica de aproveitar pequenos melodramas cotidianos para ter o que levar para a próxima sessão de análise, elaborar sofrimentos antigos e transformá-los em algum aprendizado, em alguma arte. O outro com as manias obsessivas de deixar tudo no lugar e planejar e evitar qualquer dor assim, repentina. O fato é que cada precariedade do outro já era também amada. E eles se entendiam. E sabiam que eram as tentativas demasiadamente humanas de segurar a maçã no escuro. E eles se queriam bem a cada minuto e tinham vontade de que o outro estivesse sempre por perto para dividir as coisas grandes, as pequenas, e as sem nenhuma importância.
E eles ficaram juntos-juntinhos, e foi tão pleno! E de repente eles sentiam que conheciam tudo um do outro! E isso era tão intenso! E tão mágico! Tão... tão previsível... e já era tão familiar que eles já nem lembravam... Minuciosamente descobertos, às vezes, eles sentiam-se estranhos, como dois irmãos, que de tão perto, já nem se conhecem mais.
Mas não é que num dia, tão óbvio quanto os outros, enquanto esperava dentro do carro, ela sentiu aquele calafrio do primeiro beijo e viu como ele era amável e educado com as pessoas estranhas? E riu alto, achando fofo vê-lo fazer piadas espirituosas na fila do supermercado. E aconteceu que ele também, em mais um dia de domingo, olhou da janela, sem que ela percebesse, e novamente achou-a a mulher mais fresca & doce & única & cacheada & desejada por todos os outros que passavam. E eles entenderam. E queriam, a cada dia, encontrar as belezas e as estranhezas um do outro. Meio assim, de maneira despretensiosa, um pouco distante para não ficar tão descoberto. Um pouco de esgueio para continuar delicado e sombreado.
Então, eles quiseram casar, numa cerimônia diferente, nada de igreja, com os amigos. Já que eles eram modernosos, mas não faziam questão de ser (eles só queriam estar no tempo deles, no instante exato deles mesmos). E eles não foram felizes para sempre. Eles apenas viveram o amor amando, a cada dia. Desse jeito mesmo, tão simples e tão complicado.
Talvez essa história não seja bem assim. Tudo bem, tudo bem... não foi beeem assim. Também não sei se tudo aconteceu necessariamente nessa ordem. Mas quando se trata de amor, daquele que faz a vida ser mais doce de ser vivida, é um pouco disso aí. Da minha história, da nossa história, da de vocês. Que a gente se perca e se encontre. Que vocês se percam e se encontrem, em cada gesto, em cada passo, em cada dança, no centro, ou no cantinho do palco. Mas que permaneçam estranhos conhecidos que terminam sempre de mãos dadas."

*fragmento apaixonadamente furtado do espetáculo (m-a-r-a-v-i-l-h-o-s-o!) “3 solos em 1 tempo”, de Denise Stutz.

4 de fev. de 2012

Bodas - parte 1

Esse é um texto antigo, "a little bit dark", mas pelo qual tenho um carinho, um afeto levemente masoquista. Resgatei-o ao escrever um texto-presente para o casamento de uma amiga querida. Estranhamente eles se encontram. Meio tipo yin e yang, sol e lua, ou nada disso. Só sei que ao escrever um texto mais solar e delicado sobre o encontro de duas pessoas, esse aqui reapareceu. Quero compartilhar ambos, e não me parece certo publicá-lo como "parte um" (para mim os fluxos criativos não obedecem uma cronologia), mas já que ele se materializou primeiro, eis o "Bodas - parte 1".

"Procurou as amigas, chorou, reclamou do morno da cama moldado à esquerda apenas pelo peso de seu corpo de mulher. Havia acordado aquela manhã e se assustado: viu o indizível do tempo. De nada adiantou os cremes. O tempo marca, e em descompasso a gente caminha. O tic-tac é monótono. Não é ritmo. Mas gente insiste em dançar com ele. Esse dançarino mecânico, o tempo. E acaba se enferrujando junto. Marcando o rosto com sulcos na testa. Endurecendo as articulações. Artrite. Endurecida e enferrujada ela se encontrou essa manhã. No espelho essa lucidez momentânea dos tropeços insistentes. Não. Ela não pensou tudo isso. Foi apenas aquela lucidez evidente e inexorável do tempo. Uma sensação do neutro inominável e inesquecível. Lamentou, então, com as amigas. Onde estava o amor, companheira? Aquele prometido sob noite de lua cheia? Todos aqueles planos de casa de praia, conta conjunta, animais domésticos e paixão? Que nunca deixaríamos apagar? Dez anos, e agora, daquele calor apenas uma vela quase sem linha, de cera requentada inúmeras vezes na panela inox que compramos para o lar. Só os 36 graus do meu corpo aquecendo o lado quase solitário da cama. A boca com reentrâncias, hálito de cigarro e Cepacol. Nada de novo. Também os amigos de sempre. Conselhos comedidos de uma: esquenta não... passa... é crise de bodas. Exacerbações da solteirona assumida e feliz: pula fora... vamos conhecer o barzinho novo, coroas grisalhos que comem direitinho e não deixam a gente na mão. Voltou. E no escuro do quarto onde havia deixado a outra, ela ainda a esperava. No breu infinito do cômodo impregnado pela mescla de perfumes femininos, tocaram seus rostos já flácidos. Encontrou a cicatriz na barriga dela. Aquela insensibilidade simétrica no corpo da outra. Sentiu as mãos pequenas tateando seus seios murchos. Reconheceram-se. Um, dois suspiros no silêncio. Levantou. Pendurou a bolsa preferida de brechó nos ombros, a jaqueta abafada no guarda-roupa úmido, o maço de cigarros, o cartão de crédito, as chaves do carro. Ligou para aquela mais maluquete. Talvez encontrasse alguém naquele bar. Trocariam olhares fugidios. Um pouco de gin, puxaria uma cadeira. Uns três ou quatro cigarros depois, ele a levaria ao seu apartamento e a desejaria com suas mãos de homem e seu membro teso, mas já amansado pelos anos. Se apaixonariam. Viajariam no fim de semana. Conheceria seu filho adolescente, do outro casamento. Também desfeito. Quem sabe olhassem a lua e ouvisse juras de amor eterno envolta nos braços dele. Mas antes de sair, abriu a geladeira. As maçãs argentinas escolhidas pela manhã no supermercado, ao lado do leite desnatado – a outra sabia que ela vivia brigando com a balança. Em cima da geladeira a erva enrolada na seda pelos dedos cuidadosos da companheira, bem do jeito que ela gostava, mas nunca conseguira fazer, em seus quase vinte anos de maconheira. Abriu o casaco na cadeira. Ajeitou a bolsa em cima da mesa. Fumou um cigarro. Pegou o pijama velho preferido, pendurado atrás da porta do banheiro – presente de sexto dia dos namorados. Ajeitou o travesseiro. Sentiu o cheiro do xampu novo nos cabelos da outra, e dormiu."

15 de jan. de 2012

Não saberia dizer o que lhe aconteceu naquelas férias. Desde o primeiro dia de descanso desapareceu também a escrita mental incessante. Reclamava tanto dos diálogos murmurantes, tão parecidos com as vozes que seus pacientes relatavam, que não poderia imaginar a falta que fariam. Não havia com quem brigar. Foi simplesmente assim, um vazio, uma secura, uma saudade de casa. Comprou cadernos novos, assistiu a peças e películas. E nada. Talvez tenha sido bom demais, sem melodrama para elaborar. E curiosamente, não queria inventar mais-uma-briga-para-ficar-feliz-com-as-pazes-e-escrever-um-conto-depois. Tanto tempo de análise finalmente estava surtindo efeito? Comemorou, contou para os amigos das vantagens da psicanálise. E secretamente fantasiou entrar e quebrar todos os souvenires do consultório (vingancinha neurótica). Atuou e faltou na próxima sessão. Ficou em casa, preparou um café, acendeu um cigarro só para fazer cena e escreveu. Escreveu algo bem vermelho e dolorido. Enfim, era ela de novo.