3 de abr. de 2014

Gatografias



Belíssimo poema-homenagem de Ana martins Marques à "Gatografia" de Ana Cristina Cesar


Livro das semelhanças

O modo como o seu nome dito muito baixo pode ser confundido com a palavra xícara
e como ele se esquenta de dentro para fora
o modo como a palma das suas mãos se parece com porcelana trincada
o modo como ao levantar-se você lembra um grande felino
mas ao caminhar já não se parece com um animal mas com uma máquina rápida
e de costas sempre me lembra um navio partindo
embora de frente nunca pareça um navio chegando
o modo como dita por você a palavra “sim” parece uma palavra
que fizesse o mesmo sentido em todas as línguas
o modo como dita por você a palavra “não” parece uma palavra
que você acabou de inventar
o parentesco entre as fotografias rasgadas os brinquedos esquecidos na chuva cartas
que deixamos de enviar produtos em liquidação frases escritas entre parênteses
papel de presente as toalhas que acabamos de usar e massa de pão
e, mais importante, o parentesco de tudo isso
com o modo como você chama o táxi por telefone
a camisa branca que você acabou de despir sempre me lembra um livro aberto ao sol
seus sapatos deixados na sala sempre me parecem ensaiar os primeiros passos de dança
numa versão musical para o cinema do seu livro preferido
o modo como no seu apartamento as coisas sempre parecem estar em casa
e você sempre parece estar de visita
e como você pede licença à penteadeira para chorar
o modo como as nossas conversas me lembram bilhetes interceptados cardápios de
restaurantes exóticos rótulos de bebidas fortes documentos comidos nas bordas
por filhotes de cão
o modo como os seus cabelos parecem as linhas de um livro lido por uma criança
que ainda não sabe ler
ou apenas desenhos que alguém por equívoco tomasse por escrita
o modo como os seus sonhos parecem os pensamentos de pessoas que sobreviveram
a um desastre de avião
parecem as lembranças de um ex-boxeador apaixonado
parecem os contos de fadas preferidos de ditadores sanguinários
parecem os projetos de futuro de crianças muito pequenas
os parentescos entre as guerras íntimas os jogos de armar as primeiras viagens sem
os pais os países coloridos de vermelho no mapa-múndi pessoas que sempre esquecem
as chaves as primeiras palavras ditas pela manhã e a disposição para usar a violência
o modo como apesar de tudo isso você não se parece com ninguém
a não ser talvez com certas coisas
similares a nada

Joni Mitchell - A Case of You

Eu poderia beber uma caixa de você e ainda continuaria em pé.



12 de mar. de 2014

Carta


não se assuste com esse contato EXATAMENTE AGORA. sei que sumi por tempos e não dei notícias. eu estava arrumando todos os meus livros, que você sabe, são infinitos. cheios de promessas de leituras, alguns esperam há anos, e eu jurei-juradinho-com-os-dedos-cruzados que os encontraria algum dia. quero cumprir. sou uma menina de palavra. sou uma menina de palavras. e sou uma menina de amores. isso você também sabe. daí, sigo jurando para todos os livros que encontro a cada mês. e minha lista de promessas só aumenta. tenho promessas pra cumprir até a outra vida. e meu problema é esse, nêgo. eu juro-juradinho, mas meu coração é imenso. mesmo. sei que selamos nossa amizade naquele dia em que nos encontramos, bêbados, em frente ao “bar do raul”. lembra que você abriu aquele sorriso que é só seu? e nos ligamos eternamente e caímos abraçados no chão de cerâmica vermelho cheirando a cerveja e nos beijamos e rimos muito? você cuidou tanto de mim, naquela terra louca. e por nosso amor ser eterno, às vezes o deixo para a próxima vida. e não é artimanha, nem jogo de palavra escorpiano, não. é que me perco mesmo, em meio a tantos livros, tantos amores. mas você é único (nós sempre soubemos disso, não?). então, te guardo sempre, tão vivo, que acredito que você está aqui comigo, fumando seu cigarro, bebendo sua vodca pura. mas hoje encontrei um marcador de páginas que você fez pra mim. sabe aquele com infinitos edifícios? (esse seu amor e ódio por são paulo é até bonito...) estava dentro do “a teus pés” da nossa ana c. marcava a minha loucura de mulher. a nossa, porque você é tão feminino, que talvez seja tão louco como eu... nêgo, me dei conta de que estamos longe há tanto tempo...  e saí procurando todos os marcadores que você me deu quando fiz 30 anos (te recorda da brincadeira cheia de crueldade de exu-mirim? você me ligava à noite e dizia que eu receberia a visita mais ilustre de todos os tempos. eu cheguei a ficar insone, e no fim das contas você gargalhou aquela-gargalhada-definitivamente-debochada pra dizer que, claro, eu receberia a visita do balzac. e pra compensar você veio me ver e me encheu dos seus lindos desenhos de olhos imensos e cidades). eu saí procurando você. brincando de te encontrar. você estava em mais ana c. e no “cartas” do caio fernando , que você amou. lembra que você deprimiu e devorou esse livro? depois ficou horas lendo trechos pra me provar como você e caio eram idênticos? mais uma vez, rolamos de rir no chão da sala, quando nesse delírio narcísico, você concluiu que a solução pra sua deprê seria casar com você mesmo, porque daí você estaria casando com o caio e seriam só você e ele e combinariam muito porque você é de touro e ele era de virgem e são signos de terra e você estava mesmo precisando de chão. você veio assim, na minha lembrança. eu deitei no chão, com o caio e com a ana. mas sem você, meu caio de ébano. e ri até chorar. sabe quando começo a rir e de repente você cuida de mim porque eu entro naquela de auto compaixão?  eu chorei pelas xícaras quebradas, pelo cabelo que deixo crescer pra me aquecer um pouco e por estar morrendo de rir, cheia de dentes, mas sozinha de ti, pretinho. sei que você deve estar perdido nessa paulicéia desvairada, rolando em pisos cheirando a álcool (nisso você é muito previsível), mas me escreve (e sem teclados, please!) o endereço é esse mesmo. mesmo. o de sempre, porque você sabe que diferente de ti, eu me agarro à terra, procuro um chão pra fazer meu café ralo e guardar meus livros e todas as cartas que escrevo e não envio. mas essa não é minha. é pra você.
camis  
(que te jura-juradinho, mas te ama de verdade)

PS. olha onde te encontrei no “cartas”:
“estou te querendo muito neste minuto. tinha vontade que você estivesse aqui e eu pudesse te mostrar muitas coisas, grandes, pequenas, e sem nenhuma importância, algumas (...) te escrevo, enfim, me ocorre agora, porque nem você nem eu somos descartáveis. E amanhã tem sol.”
PS. não é cósmico?
 me escreve uma carta com a letra tua.