16 de mai. de 2011

O tempo leva tudo, exceto nossa história


Há algumas semanas recebemos a notícia de que minha avó estava doente. Vovó sempre foi a matriarca da família. Nem cheguei a conhecer meu avô. Falecido antes de meu nascimento, nunca notei sua falta. Vovó sempre ocupou todos os espaços. Ela chegou a morar conosco quando eu era pequena e mais precisava de presença. Papai e mamãe sempre trabalharam muito, e era ela quem passava a maior parte do tempo comigo. Vovó amassava inhame no feijão preto e me dava de colher. Fazia o mesmo com o angu. Era a única que conseguia me alimentar sem muito esforço. Foi ela que me ensinou que misturar amarelo com azul dava verde, quando não tinha essa cor para pintar uma árvore do dever de casa. Vovó me fazia chiquinhas e tranças apertadas. E me ensinou a oração do anjo da guarda, que rezo até hoje quando tenho pesadelos. Ela me contava histórias todas as noites, e mesmo que eu sempre pedisse as mesmas, ela repetia como se fosse a primeira vez. Nunca mais escutei a história de João e Maria da maneira que ela contava: um rabinho de rato fazia as vezes do dedinho magro para enganar a bruxa, que se transformava num reluzente cavalo branco depois de ser jogada dentro do caldeirão! Vovó também tinha seu lado bruxa, como todas as mães do mundo. Me colocava para descascar alho com as mãozinhas peladas. Quase me matou passando Detefon em minha cabeça com piolhos (ela tinha umas receitas peculiares...). Passei uma tarde toda escondendo meu dedo talhado depois de desobedecê-la e usar a faca afiada para cortar o pão. Mas não havia colo mais acolhedor! Quando ela descobriu os metros de papel higiênico ensangüentados pela casa, me acudiu como só uma avó sabe fazer. Uma vez, quando fiquei doente com esperanças de que mamãe pudesse ficar mais em casa para cuidar de mim, foi ela quem ficou. Fez sopinha e deu banho “tcheco” para não judiar de mim. Quando mudamos para Piracicaba foi dela de quem mais senti saudades. Quando a visitava, eu era novamente a pessoa mais amada do mundo. Ela me pedia pra dormir junto com ela, me fazia escutar suas orações infindáveis, porque tinha que rezar por todos os conhecidos. Sempre respeitou minhas escolhas. Seu amor estava acima dos valores que havia aprendido por toda a vida em sua religião arcaica. Agora, vovó está em uma cama, dependendo do cuidado das pessoas, e não podemos estar lá para acompanhá-la. Eu sei que isso não é o que ela esperava. Por isso talvez esteja desligando sua consciência. Mandou-me o recado de que seu tempo na Terra está acabando, mas que esperará minha visita. Vovó ainda está aqui, de sua maneira (como sempre), entre nós. O tempo é a única coisa realmente democrática no mundo. Ele é implacável com todos nós. Já estou me preparando para quando vovó se desligar completamente e não mais me reconhecer. Não sei como vou reagir quando ela for viver no lugar onde sempre imaginou e nos deixar. Mas para onde quer que ela vá, vovó sempre vai estar em mim. Seus causos, o cheiro do seu feijão, suas receitas envenenadas . Hoje eu cresci, mas estranhamente eu sempre vou ser a neta de chiquinhas cacheadas. E a cada partida eu vou entendendo que o tempo pode levar tudo, exceto nossa história

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