4 de fev. de 2012

Bodas - parte 1

Esse é um texto antigo, "a little bit dark", mas pelo qual tenho um carinho, um afeto levemente masoquista. Resgatei-o ao escrever um texto-presente para o casamento de uma amiga querida. Estranhamente eles se encontram. Meio tipo yin e yang, sol e lua, ou nada disso. Só sei que ao escrever um texto mais solar e delicado sobre o encontro de duas pessoas, esse aqui reapareceu. Quero compartilhar ambos, e não me parece certo publicá-lo como "parte um" (para mim os fluxos criativos não obedecem uma cronologia), mas já que ele se materializou primeiro, eis o "Bodas - parte 1".

"Procurou as amigas, chorou, reclamou do morno da cama moldado à esquerda apenas pelo peso de seu corpo de mulher. Havia acordado aquela manhã e se assustado: viu o indizível do tempo. De nada adiantou os cremes. O tempo marca, e em descompasso a gente caminha. O tic-tac é monótono. Não é ritmo. Mas gente insiste em dançar com ele. Esse dançarino mecânico, o tempo. E acaba se enferrujando junto. Marcando o rosto com sulcos na testa. Endurecendo as articulações. Artrite. Endurecida e enferrujada ela se encontrou essa manhã. No espelho essa lucidez momentânea dos tropeços insistentes. Não. Ela não pensou tudo isso. Foi apenas aquela lucidez evidente e inexorável do tempo. Uma sensação do neutro inominável e inesquecível. Lamentou, então, com as amigas. Onde estava o amor, companheira? Aquele prometido sob noite de lua cheia? Todos aqueles planos de casa de praia, conta conjunta, animais domésticos e paixão? Que nunca deixaríamos apagar? Dez anos, e agora, daquele calor apenas uma vela quase sem linha, de cera requentada inúmeras vezes na panela inox que compramos para o lar. Só os 36 graus do meu corpo aquecendo o lado quase solitário da cama. A boca com reentrâncias, hálito de cigarro e Cepacol. Nada de novo. Também os amigos de sempre. Conselhos comedidos de uma: esquenta não... passa... é crise de bodas. Exacerbações da solteirona assumida e feliz: pula fora... vamos conhecer o barzinho novo, coroas grisalhos que comem direitinho e não deixam a gente na mão. Voltou. E no escuro do quarto onde havia deixado a outra, ela ainda a esperava. No breu infinito do cômodo impregnado pela mescla de perfumes femininos, tocaram seus rostos já flácidos. Encontrou a cicatriz na barriga dela. Aquela insensibilidade simétrica no corpo da outra. Sentiu as mãos pequenas tateando seus seios murchos. Reconheceram-se. Um, dois suspiros no silêncio. Levantou. Pendurou a bolsa preferida de brechó nos ombros, a jaqueta abafada no guarda-roupa úmido, o maço de cigarros, o cartão de crédito, as chaves do carro. Ligou para aquela mais maluquete. Talvez encontrasse alguém naquele bar. Trocariam olhares fugidios. Um pouco de gin, puxaria uma cadeira. Uns três ou quatro cigarros depois, ele a levaria ao seu apartamento e a desejaria com suas mãos de homem e seu membro teso, mas já amansado pelos anos. Se apaixonariam. Viajariam no fim de semana. Conheceria seu filho adolescente, do outro casamento. Também desfeito. Quem sabe olhassem a lua e ouvisse juras de amor eterno envolta nos braços dele. Mas antes de sair, abriu a geladeira. As maçãs argentinas escolhidas pela manhã no supermercado, ao lado do leite desnatado – a outra sabia que ela vivia brigando com a balança. Em cima da geladeira a erva enrolada na seda pelos dedos cuidadosos da companheira, bem do jeito que ela gostava, mas nunca conseguira fazer, em seus quase vinte anos de maconheira. Abriu o casaco na cadeira. Ajeitou a bolsa em cima da mesa. Fumou um cigarro. Pegou o pijama velho preferido, pendurado atrás da porta do banheiro – presente de sexto dia dos namorados. Ajeitou o travesseiro. Sentiu o cheiro do xampu novo nos cabelos da outra, e dormiu."

4 comentários:

  1. Lembro bem dele... E delas...
    Obrigada.

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  2. Eu adorei esse conto, angústia feminina pura...tenho certeza que Caio F. e Ana Cristina César estão orgulhosos em ter uma filha assim...ei, fiquei co m vergonha do meu texto agora...mas obrigadão!

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    1. Olá Claudimar! Que bom que gostou! E seu texto, nem pense em sentir algo além de orgulho e carinho por ele! é intenso e "masculino". Talvez eles até se complementem tb! rsrsr. abçs

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