8 de jan. de 2013

A ética do acontecimento

Dos encontros dos corpos emergem efeitos incorpóreos que são os acontecimentos. Os acontecimentos, por não serem corpóreos, não existem. Os corpos habitam o plano físico e os acontecimentos o extra-físico. Os corpos existem e os acontecimentos insistem. Toda ação física ou corpórea é inseparável de uma cadeia de ações. Os estóicos chamam essa cadeia causal das ações entre os corpos de destino. Concluíram que, sendo o destino regido apenas pela física dos corpos, não haveria liberdade de escolha. Assim sendo a ética não seria possível. Seu desafio era encontrar um modo de afirmar o destino e, ao mesmo tempo, salvar a liberdade individual de escolha. Resolveram esse problema concluindo que a ética não poderia se basear exclusivamente, nem na física dos corpos, nem na lógica dos acontecimentos. A ética estaria situada entre as duas (...) Os estóicos afirmam que podemos pensar o tempo de duas maneiras: a partir dos corpos e a partir dos acontecimentos. A física dos corpos estaria submetida à cronos, o tempo cronológico que mede o intervalo do movimento da ação de todos os corpos que existem. Enquanto tempo dos corpos ele é sempre presente. E só o presente existe. A partir dos acontecimentos o tempo não existe, insiste. Os acontecimentos estariam imersos no aion, o tempo ilimitado onde o passado e o futuro insistem. Nesse tempo todo acontecimento é, foi e será. Presente, passado e futuro acontecem ao mesmo tempo. Por exemplo: se estou amando, eu amo, já amei e vou amar. Tudo ao mesmo tempo. Todo acontecimento, que insiste, tem a forma do passado e do futuro, no momento em que acontece. É como se o tempo passado e o tempo futuro se encontrassem no instante, do mesmo modo que as linhas paralelas se encontram no infinito, para formar o tempo do presente eterno, desprovido de idade cronológica. Esse tempo, de idade eterna, seria a própria eternidade. Quando cronos e aion se encontram, qualquer banalidade pode se transformar em um grande acontecimento e qualquer acontecimento pode corresponder a eternidade de uma vida, porque é vivido num tempo ilimitado. É justamente nesse tempo que o amor é vivido como sendo eterno (...) Nada é mais imoral para um homem do que não ser dígno do que lhe acontece (...) Ser ético é afirmar os acontecimentos, sejam eles quais forem. E afirmar os acontecimentos não é aceitar passivamente nem negar o que acontece, mas sim querer alguma coisa no que acontece, tornando-se co-autor dos acontecimentos. Tornar-se ético, portanto, é aprender a ser criativo. É aprender a criar o que não existe. É aprender a captar o que insiste. Querer alguma coisa no que acontece é querer, a partir da finitude do presente que existe, o ilimitado do passado e do futuro que insiste. É querer retirar do presente finito, o ilimitado da eternidade.Esse movimento de passar do instante para o acontecimento como ilimitado os estóicos chamaram de contra-efetuação. Contra-efetuar é entrar no interior do acontecimento na medida em que ele estiver se efetuando. É captar do acontecimento a sua parte incorpórea: o passado e o futuro. E isso é o que significa devir. Devir é tornar-se. Se os corpos são tudo o que é substantivo e adjetivo, os acontecimentos são os verbos no infinitivo: amar, dançar, filosofar; ou no gerúndio: amando, dançando, filosofando (...) Devir é tudo o que é transitório. Querer alguma coisa no que acontece é querer o que há de transitório no acontecimento. Os verdadeiros amantes não fazem apenas o encontro com os corpos que existem. Fazem um encontro com o amor, que é transitório. Sendo transitório o amor não existe, insiste. Ser ético, portanto, é experimentar o amor fati e viver em devir. É aprender a perceber-se como causa ativa ou passiva de todos os efeitos que nos acontecem. É assumir inteira responsabilidade por nossa atividade ou passividade. É ser digno de tudo aquilo que acontece. Pois dignos ou indignos não são os acontecimentos. Dignos somos nós mesmos quando conseguimos extrair o que há de melhor em um acontecimento.
(Jadir Lessa)

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